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Milagre no Bronx
06.novembro.1998
A All Hallows High School está instalada num dos bairros mais pobres de Nova York. Mesmo assim, virou um benchmark para os americanos
Tania Menai, de Nova York
O relógio marca 8h55 da manhã de uma terça-feira. O prédio, em estilo inglês, fica em frente a um parque tranqüilo, todo arborizado. Toquei a campainha uma vez. Nada. Tentei novamente. Nada. Chego a pensar "será que hoje é algum feriado?" Até que a porta vermelha se abre e uma figura simpática, chamada Sean Sullivan, diz "Olá, eu sou o diretor da escola. Mas também tenho a função de abrir a porta".
A limpeza das salas e o sorriso dos funcionários da All Hallows High School (em português, Escola de Todos os Santos), uma escola católica irlandesa que completou 89 anos, impressiona. Os 460 alunos, apenas meninos, têm de 14 a 18 anos. Mas isso não é sinônimo de gritarias, murros ou selvagerias. Apesar de não ter uniforme, eles vestem calças compridas, camisa social, gravata e, nos dias de frio, uma malha azul marinho com o emblema da escola que diz em latim pro fide et patria (por Deus e pela Pátria). Botas que ultrapassam a altura da boca da calça são proibidas. Jeans, então, nem pensar. No último ano letivo, que terminou no primeiro semestre deste ano, 100% dos alunos da escola completaram o curso dentro dos quatro anos previstos e foram aprovado pelas universidades: um salto de 25% em relação aos dois anos anteriores. Esse número supera de longe as estatísticas do Conselho de Educação de Nova York: no mesmo ano letivo, apenas 50% de alunos de escolas públicas terminaram o curso dentro do prazo e desses 62% foram aceitos pelas universidades. A formatura dos alunos é feita na imponente Catedral Saint Patrick, na Quinta Avenida.
A All Hallows não fica na Park Avenue e nem o tal parque é o Central Park. Os alunos não têm olhos azuis, tampouco são filhos de diplomatas ou executivos. O endereço fica na parte sul do Bronx, a 15 minutos de metrô do centro de Manhattan, onde a renda familiar anual é em média de 15 000 dólares e a per capita de 7 102, uma das mais baixas dos Estados Unidos. O quadro de alunos é composto por 67% de hispânicos, 32% de negros e apenas 1% de brancos ou asiáticos. Mesmo sendo uma escola católica, 41% dos alunos têm outra religião - grande parte batista ou adventista. Dois terços deles recém imigraram ao país e ainda sofrem com a barreira da língua.
Da janela de sua sala, toda enfeitada com duendes de gesso, o diretor Sullivan observa o parque e recorda que na década de 80 ali era ponto de drogas. A violência corria solta. Ele proibia os alunos de circular por aquela região, para que não se envolvessem com estudantes barra pesada de duas escolas públicas das rendondezas.
O Bronx ainda está longe de ser candidato a cartão postal de Nova York. Mas a situação do bairro deu uma guinada de 180 graus depois do esquema de segurança que o prefeito Rudolph Giuliani e o Departamento de Polícia de Nova York implementaram na cidade. Sullivan diz que nas tardes de hoje o parque fica repleto de mães, crianças e idosos. Até as duas escolas públicas vizinhas estão mais calmas.
O mesmo tipo de faxina que Giuliani fez na cidade, Sullivan pôs em prática na All Hallows. Irlandês de nascimento, mas criado em Nova York, o diretor se formou na escola na turma de 1973. Assim que assumiu o cargo, há dois anos, 36 alunos foram "gentilmente" convidados a se retirar da escola: 28 por motivos de disciplina, 6 por aproveitamento escolar insuficiente e 2 por excesso de faltas. Alguns deles chegaram a escrever cartas pedindo desculpas e implorando para voltar, mas com Sullivan não tem papo. A expulsão serviu de exemplo para os novatos. Além disso, quem faltar mais de 28 dias por ano é reprovado, independente das notas.
O mundo pode estar desabando, mas todos os dias, religiosamente às 9h54 da manhã, a campainha toca. Todos, incluindo os professores, param o que estiverem fazendo, pegam um livro e/ou jornal e lêem ininterruptamente até às 10h21. Nessa meia hora, nem cemitério é tão silencioso. Ninguém se mexe. Uns até chegam a dormir sentados. O único que se vê perambulando pelos corredores a passos ligeiros é o bedel, um garotão de uns trinta anos que fora da escola deve arrasar corações, mas que dentro provoca calafrios. Ele passa de sala em sala para checar se todos estão de olhos grudados nos livros. E puxa as orelhas - muitas vezes ornamentadas com argolas - de quem estiver desrespeitando as regras.
A leitura obrigatória aumentou as notas de inglês em todas as turmas. Fora isso, eles ainda têm aula de latim e espanhol. Sullivan não sossega e já pensa num professor de francês assim que os custos permitirem.
Ao contrário do que se pode imaginar, o diretor não é a imagem do carrasco que muitas escolas criam para impor disciplina. Sua equipe, formada por 31 professores, 4 psicólogos, 3 padres e uma freira, consegue manter a filosofia da não-violência. "No meu tempo quem não obedecesse ao professor, levava palmada na hora", diz Sullivan. "E se reclamássemos em casa, apanhávamos dos pais, porque o professor era quem estava sempre certo." Quando a escola foi fundada em 1909, o prédio ficava no Harlem e atendia à elite dos imigrantes irlandeses. Em 1930, ano de plena recessão, a escola ganhou o novo prédio no Bronx. Na época, a vizinhança mesclava irlandeses e judeus. Mas com o passar dos anos, a região foi se desvalorizando e hoje os alunos da All Hallows são filhos da pobreza. Com eles, a aplicação do método gritaria não funciona. A própria vida já é uma violência. Um dos psicólogos se dedica exclusivamente aos casos de drogas e álcool. Hoje ele atente a um grupo de 12 meninos.
"Temos o papel paternal de incentivar, pois 67% dos alunos são filhos de mães solteiras. O que eu mais repito é ‘sim, você é capaz, sim, você pode’" afirma Sullivan. Quase todas as mães trabalham fora e muitas têm dois empregos para poder pagar a anuidade escolar. Alguns meninos não aparecem na escola simplesmente por não ter ninguém em casa para tirá-los da cama. Outras vezes, as próprias mães os fazem faltar às aulas para que eles as acompanhem ao banco para traduzir o que o gerente diz. Motivos como esses dão à escola a função de educar os pais. Mas o desinteresse é enorme. Além das duas ou três reuniões anuais que a escola promove, as mães só aparecem quando chamadas por algum motivo sério. Desde que as aulas começaram, neste semestre, apenas duas delas telefonaram: uma para perguntar por que eles não serviam almoço e a outra para dizer que perdeu o emprego e não podia mais pagar a escola. "Isso já é uma grande coisa. Pelo menos elas telefonaram", diz Sullivan.
Para o diretor, o que essas crianças precisam é de espírito comunitário. E essa foi mais uma tarefa para o Super Sullivan, que implementou um pacote de cursos extracurriculares. Antigamente, quando a campainha de saída tocava, o sumiço era instantâneo. Hoje, eles têm prazer de ficar na escola após as aulas. Cada aluno deve escolher pelo menos duas matérias como decoração, teatro, artes, mídia e até zen budismo. A escola vai passar a abrir as portas aos sábados para essas atividades, além das aulas de apoio. Isso sem contar os esportes: dois ex-alunos jogaram em times de basquete da NBA e um participou das Olimpíadas de 1976. A escola tem três times de atletismo, três de basquete, dois de beisebol, dois de boliche e dois de soccer (o nosso futebol). O único estudante brasileiro que passou pelo colégio, Bruno de Moura, formado em 1996, era um dos craques.
Sullivan também se orgulha da turma de teatro. No ano passado, os alunos encenaram Macbeth, de Shakespeare, para mais de 500 pessoas que se comprimiram num ginásio. Recentemente, o professor de teatro, muito querido pelos alunos, recebeu uma proposta para ensaiar atores da Broadway e teve de abandonar a escola. A perda foi tão sentida, que o professor resolveu dar aulas voluntárias para os meninos aos sábados. Além disso, todos prestam de 20 a 50 horas de serviços comunitários em hospitais e serviços sociais, dependendo da série. Quanto mais velho, mais horas.
Cada aluno custa para a escola 6 500 dólares por ano, mas as famílias só pagam 3 650. Só para comparar: uma escola particular americana de mesmo nível custa anualmente algo em torno de 14 000 dólares. O homem do dinheiro se chama Thomas Leto, o presidente da escola. É dele a árdua tarefa de bater de porta em porta e promover eventos a fim de arrecadar o suficiente para manter a qualidade da escola e proporcionar bolsas aos estudantes mais carentes. E parece que ele tem feito o dever de casa direitinho: mais da metade dos estudantes têm bolsas totais ou parciais. Cerca de 100 empresas e patrocinadores colaboram com a escola, entre elas nomes como New York Times Co. Foundation, Bloomberg Financial Markets, MCI Telecommunications, Time Warner, Citicorp, Coopers & Lybrand, Goldman Sachs, JP Morgan, Chase Manhattan, Merrill Lynch, Morgan Stanley & Co. e UBS. Este ano, 1,2 milhão de dólares veio das anuidades dos alunos e 1,3 milhão das empresas. A All Allows já está entre as cinco escolas da cidade que mais arrecada dinheiro entre as empresas.
Existem outras maneiras de ajudar uma escola. Recentemente, a Allen & Co. Inc., uma empresa de investimentos, atualizou seus equipamento de informática e doou 20 computadores antigos à All Hallows. As máquinas doadas, embora já ultrapassadas, são o suficiente para conectá-la à Internet e carregar programas básicos. "O nosso objetivo é fazer com que os jovens saiam daqui dominando o mundo da informática", diz Leto. A escola dispõe hoje de 100 computadores - um para cada 4,6 alunos. Mas isso é só o começo. Um programa chamado E-Rated, criado pelo presidente Bill Clinton, em 1996, fará com que todas as escolas e bibliotecas de comunidades carentes e rurais do país tenham subsídios para acesso à Internet. Posto em prática neste semestre, o incentivo do governo vai variar de acordo com a renda média dos alunos. A All Hallows se enquadra na categoria de alunos de mais baixa renda. Isso significa que a escola vai receber 90% de desconto tanto do provedor de acesso à Internet, quanto da companhia telefônica, resultando numa economia mensal de 700 dólares. Esse valor será injetado em mais equipamentos de informática, além da criação de uma homepage (o endereço, que deverá estar disponível em dezembro: www.allhallows.org).
Além dos computadores, os alunos ainda dispõem de um estúdio de vídeo e TV de dar inveja a muitos estudantes de comunicação de universidades brasileiras. Nesse estúdio eles produzem diariamente dois programas de cinco minutos que divulgam suas atividades e anúncios do diretor. Os programas são mostrados no circuito interno da escola - cada sala de aula tem um aparelho TV. O trabalho de formatura inclui a produção de vídeo, além de um trabalho de dez páginas e um discurso. "Esses jovens têm dificuldade de expressão e tendem a não contar o que acontece em casa", diz Edward Caban, o professor de mídia. "Nessa aula procuro fazer com que eles coloquem o máximo de experiência para fora por meio de discursos". Na aula que assisti, o tema era "O dia mais memorável da minha vida". Os meninos, de 16 anos, subiam no palco um por um e eram filmados enquanto contavam suas experiências. Enquanto os alunos discursam, os colegas abaixam a orelha. O respeito entre eles é notável. Um contou sobre o dia em que tirou sua carteira de motorista. Outro falou de quando entrou para o time de natação. Um dos discursos mais marcantes foi o de Shamir Stephens, um menino grandalhão e meigo. Shamir dividiu com a turma sua experiência de ter sido escolhido para representar Nova York num evento que reuniu jovens de todo o país, durante duas semanas, em Los Angeles, para promover atividades recreativas com crianças carentes e aidéticas. O discurso surpreendeu até mesmo o diretor e o presidente da escola. "Esta é a alma da All Hallows", diz Leto.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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