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Oficialmente mortos
27.setembro.2001
Tania Menai
Marcia nasceu em 1967. Tem uma tatuagem no seio direito que diz “Andre” e outra no seio esquerdo onde lê-se “Baby Devil”. Ela trabalha na Carr Future, no 98o andar do 1 World Trade Center. Quem souber de seu paradeiro, por favor contate seu marido: o Andre. Jean Marie, a menina sorridente da foto, também tem uma tatuagem – mas a dela é no bum-bum. Ela está vestindo uma camista preta e calças cinza, pesa entre 58 e 60 quilos e sua mãe aguarda notícias. Paul trabalha na Bloomberg – uma foto mostra o rapaz, de 22 anos, abraçando seu bebê de 10 meses. Na manhã de 11 de setembro, ele estava no restaurante Windows on the World, no 107o andar da Torre 1. Se alguém o viu em algum hospital, por favor, avise a sua esposa. Anthony tem 33 anos e está vestindo um pulôver e calças cinza. Ele trabalha na corretora Cantor Fitzgerald e sua esposa deseja saber onde foi visto pela última vez naquela manhã. O noivo da foto é Doug. Ele tem uma cicatriz no lado esquerdo da barriga e trabalha no Sander O’neill, no 104o andar da Torre 2. Na mesma empresa, trabalha Chris, de 52 anos. Ele está com relógio suíço Fabe Luere no pulso direito e tem uma marca de nascença um pouco acima da nuca, já no couro cabeludo. “Mas é preciso olhar bem de perto para notá-la”, diz o cartaz que sua família colocou na esquina da rua 25 com Lexington.
Um dia eles foram uma estimativa de 4 mil. Noutro, uma contagem de 5 mil e poucos. Hoje o número oficial de pessoas que tiveram suas vidas arrancadas pelo terrorismo que atingiu o World Trade Center é de 6 347 – destes, 305 foram confirmadas mortas. Destes, 238 corpos foram reconhecidos. De um dia para o outro, a intimidade de toda essa gente foi exposta ao mundo como resultado do desepero de seus parentes em busca de algum sinal de vida. Suas cicatrizes, tatuagens, piercings no umbigo, na sombrancelha, abertura proemninete nos dentes da frente ou apenas seus sorrisos dão a dimensão humana da tragédia que derrubou duas torres e milhares de futuros. Os sobrenomes, que vão de Milewsky a Alvarez, mostram que aquelas eram torres de Babel. Cartazes como estes estão espalhados por postes, pontos-de-ônibus, estações de trem, como a Grand Central Station, ou nos centros de ajuda aos familiares. Eles descrevem as vítimas no tempo presente e mostram imagens de momentos felizes como formaturas, casamentos, festas e beijos. Alguns são impressos a laser, outros feitos a mão. Todos pedem ajuda e fornecem telefones, beepers, endereço de e-mail ou qualquer outra forma de contato com esperançosos maridos, pais, filhos, esposas, namorados, irmãs e netos. Nos primeiros dias que seguiram a tragédia, famílias inteiras faziam fila para mostrar as fotos no canal de televisão local, o New York 1 Pouco mais de duas semanas após ao ataque e nenhum resquício de esperança, os muros tornaram-se um silencioso tributo às vítimas. Alguns cartazes ainda pedem ajuda aos animais de estimação que ficaram órfãos e outros indicam listas online como a missinglist ou a webdriver . Os passantes, nova-iorquinos normalmente preocupado com o próprio umbigo, param, lêem um por um, lamentam e chegam até a recuperar os cartazes cuja fita adesiva já está desgastada. Talvez esta seja a única coisa que se possa fazer por aquele rosto até então desconhecido.
“Nossa! Eu a conhecia!”, exclamou o motorista dominicano Dio Duna ao ver um dos cartazes. “Eu sempre a levava do trabalho para casa. Ela era um encanto de pessoa. Meu Deus...”. Ele se referia a Tara, uma funcionária da General Communication, no 83o andar do WTC1. Seu cartaz pedia para quem soubesse de alguma informação, que avisasse a seu marido ou a sua mãe. Dio, que trabalha há sete anos dirigindo limousines da empresa Delancey, conta que desde o dia 11, os negócios da firma despencaram. Eram eles que buscavam e traziam toda essa gente dos aeroportos, lares e reuniões. E é provável que o marido e mãe de Tara estejam na fila do Family Assistence Center , um centro de ajuda criado pelo estado de Nova York e pela Cruz Vermelha para dar assistência aos parentes. Esta semana, eles estão fazendo fila em busca do que mais adiaram: o atestado de óbito.
Numa missão organizada pelo New York City Bar Association , a versão nova-iorquina da OAB, mais de 500 advogados estão trabalhando probono para que o processo burocrático de um atestado de óbito, que normalmente dura 3 anos, seja feito imediatamente. Até a tarde de quinta-feira, 565 famílias já tinham comparecido ao local. Segundo o consulado do Brasil em Nova York, nenhuma das cinco famílias brasileiras atingidas pela tragédia procurou ajuda consular. “O ser humano precisa de um funeral como símbolo de uma nova etapa da vida sem aquela pessoa – sem isso, fica mais difícil aceitar a morte”, diz uma funcionária do governo que está assistindo famílias no Family Center. Mas além do efeito emocional, o atestado de óbito é uma ferramenta essencial para tocar a vida adiante.“ Sem este documento, a viúva de um funcionário da Marsh & McLennan (empresa que perdeu 315 pessoas) não conseguia cancelar o contrato de três anos da linha telefônica de seu marido com a companhia do celular”, conta Beverly Behan, que está ajudando familiares daquela firma. “O local tem aspecto de uma feira de negócios”, descreve o agente Robert Munson, da Cruz Vermelha. São várias barraquinhas com as diversas agências voluntárias. Há quem leve o cachorro treinado para fins terapêuticos, para “fazer as pessoas chorarem” ou quem ilustre as paredes com desenhos alegres feitos por crianças do país inteiro – já são 600 deles. “Gostaria de enviar meu cavalo para ajudar vocês”, escreveu uma criança de fazenda de Wisconsin. A Cruz Vermelha, que alocou 8 mil voluntários desde o dia 11, ainda montou um restaurante no local, que fica aberto o tempo todo, ou seja, de 8 da manhã à meia-noite. A cidade colocou ônibus disponíveis para os parentes e todos os carros que entram no local são rigorosamente revistados. Enquanto isso, caminhões despejam caixas com ursinhos de pelúcia, doados por uma empresa de Oklahoma.
O Family Center tem sido o ponto de apoio para vários parentes e até sobreviventes que perderam o trabalho, como o assistente de cozinha Wilfredo Canales, que há dez anos trabalhava para o Marriott Hotel, que ficava no WTC1. Toda essa gente está sendo ajudada e suas contas estão sendo pagas. Só fica a interrogação sobre um novo emprego. Mas, talvez, o episódio mais desgastante tenha sido a de amostras de DNA. “Falar com a imprensa é a parte boa do meu dia”, diz David Vincent, pai de Melissa, de 28 anos. Ela estava no 102o andar do WTC1, mas chegou a ligar para a polícia 17 minutos depois do ataque. “Não me incomodo de doar nada para facilitar o processo de DNA – mas isso é muito doloroso”, diz ele. “Sei que o prefeito Giuliani está fazendo tudo de melhor para facilitar as nossas vidas. Mas a filha dele não está lá – não vou descansar enquanto não encontrar Melissa”. Ainda perto do hospital St. Vincent, o que recebeu o maior número de feridos, um outro cartaz dizia: “Procura-se duas irmãs da cidade de Nova York. Elas são altas e esguias”. Alguém viu?
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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