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A América perdida de Rockwell
20.dezembro.2001

Tania Menai

Os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos geraram milhares de manifestações artísticas. São murais de desenhos infantis, letras de músicas, fotos gigantes, monumentos feitos de escombros das duas torres e capas de revistas especialmente trabalhadas. Mas ninguém traduziria melhor as angústias, a ansiedade, o medo e o patriotismo dos americanos do que o ilustrador Norman Rockwell (1894-1978). Numa única gravura, ele poderia contar toda a história com objetividade, ironia, humor e profundidade. Foi isso que fez durante sua vida, deixando mais de 4 mil imagens entre telas, 800 capas de revistas e campanhas publicitárias para mais de 150 marcas.

Adorado pelos americanos, Rockwell viveu numa época em que Jackson Pollock espirrava tinta na tela e Picasso pincelava mulheres com três olhos. Ao contrário de seus contemporâneos, e apesar de admirá-los, Rockwell foi um mestre da comunicação de massa, um Daumier (1808-1879) da América. Assim como o cartunista, escultor e pintor francês, ele retratava o povo, o cotidiano, a vida familiar, o barbeiro, a sorveteria, os escoteiros, cenas de Natal, a babysitter se descabelando com o choro da criança, o jantar de Thanksgiving. O público o entendia. “Lugares comuns nunca se tornam cansativos”, dizia ele. “Somos nós que nos cansamos deles quando deixamos de ser curiosos e apreciativos”. Toda esta relação de carinho e admiração está exposta até o dia 3 março no Guggenheim Museum de Nova York, quase como um presente para uma cidade que nunca esteve tão carente. Intitulada “Norman Rockwell: Pictures of the American People”, ela reúne 70 quadros a óleo e 322 capas da revista The Saturday Evening Post, onde ele trabalhou 47 dos 60 anos de sua carreira – esta é a maior mostra de suas obras, desde sua morte. A exposição está girando o país, com montagem em Atlanta, Washington, Chicago, Phoenix, San Diego, além do próprio museu do artista, na pequena cidade de Stockbridge, em Massachusetts. No Guggenheim, ela ocupa salas laterias em dois andares, enquanto a rotunda central, toda pintada de preto, leva a exposição “Brazil Body and Soul”.

Nova-iorquino, de família simples, Rockwell cresceu numa brownstone da rua 103 esquina com a Avenida Amsterdam. Seu pai trabalhava no escritório de uma firma de tecidos. Sua mãe dizia-se ‘inválida’. A relação com o lápis-de-cor começou já na infância. Ainda jovem, e sempre magrinho, frequentou a Chase School of Fine and Applied Arts. Em 1910, foi aceito pela Art Students League. Seu primeiro trabalho como ilustrador, em 1913, foi na revista Boy’s Life, da Boys Scouts of America, a associação de escoteiros do país. Em 1925, Rockwell ilustrou o primeiro calendário para escoteiros,coisa que acabou fazendo por mais 50 anos. Calcula-se que estes calendários eram consultados 1 bilhão e seiscentas vezes por dia. Fãs de carteirinha incluem Steven Spielberg e Ross Perrot.

Apesar de apedrejado por alguns críticos, a caixa postal de Rockwell vivia abarrotada de cartas de fãs. Ele viveu numa época em que ilustradores tinham o prestígio e o glamour que hoje pertecem às estrelas de cinema. Thomas Hoving, ex-diretor do Metropolitan Museum of Art, diz que Rockwell foi um dos mais bem-sucedidos comunicadores visuais do século – sua arte cobria o abismo entre a ‘high art’ e a ‘low art’. Além disso, ele retratou os anos da Grande Depressão americana e a vida nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Hoving acrescenta que, ao contrário dos ilustradores que atuaram entre 1930 e os anos 60, o trabalho de Rockwell nunca murchou – suas crônicas continuam vivas e atemporais.

Casado duas vezes, pai de três filhos do segundo casamento, o episódio que talvez tenha mais marcado a carreira de Norman Rockwell foi “The Four Freedoms”. Em 1941, o presidente americano Franklin Roosevelt criou quatro atos de direitos humanos básicos que dizem respeito à liberdade - de expressão, de culto, de querer e de temor - que “deveriam ser garantidos a qualquer pessoa do mundo”. Esta foi uma maneira de identificar os objetivos da guerra e revelar sua esperança no período pós-guerra. Para divulgar estes atos para o grande público, o governo comissionou arte em forma de pôsteres, fotos, pinturas e murais. Mas nada adiantou. Uma pesquisa feita pela Agência de Informação de Guerra no verão de 1942, revelou que apenas um terço dos americanos tinha algum conhecimento das “Quatro Liberdades” e não mais do que 2% deles era capaz de identificá-las corretamente. Foi quando Rockwell teve um estalo às 3 da manhã e durante três dias pintou freneticamente seus vizinhos em cenas que representavam as quatro liberdades. Foi a Washington e apresentou-as aos encarregados da Agência de Informação de Guerra. Levou um não redondo e a alegação de que “nas guerras anteriores, o governo usou ilustradores – nesta, iriam usar ‘artistas de verdade’”.

O herói da história acabou sendo Ben Hibbs, editor da The Saturday Evening Post. A revista publicou as quatro gravuras que se tornaram, de certa forma, símbolo da carreira de Rockwell. Não é à toa que ele vive na memória de qualquer americano, hoje, cinquentão. E também não é a toa que nestes três últimos meses ele tem feito mais falta do que as duas torres do World Trade Center.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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