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Um dia no metrô de NY
24.agosto.2004

Tania Menai, de Nova York

Parece um desfile: a banda de peruanos toca flauta, o rastafári batuca latas, Spike Lee morde um palito, o mauricinho lê “The Wall Street Journal”, o mendigo diz que é portador do vírus HIV, a mexicana arrasta os filhos, o grupo de idosos volta da ópera, o asiático de cabelos loiros não tira o olho do livro de poesias e o indiano está tranqüilamente no décimo-quinto sono. Se as Torres Gêmeas fazem falta à paisagem nova-iorquina, experimente tirar o metrô da cidade. A morte é certa. O metrô é a aorta de Nova York, torna o carro dispensável e faz com que o andar de baixo da cidade seja tão dinâmico quanto o de cima. Ou mais. Transportando hoje 4,7 milhões de pessoas por dia e interligando quatro distritos da cidade (Manhattan, Queens, Bronx e Brooklyn), o sistema completará 100 anos no próximo dia 27 de outubro. A reportagem do NoMínimo passou horas nos vagões deste laboratório antropológico, acompanhando as idas e vindas dos passageiros deste mundo subterrâneo, como o menino de estilo rapper (boné, rede de cabelo, brincos, colares e calça pelos joelhos) que saca um violino e dá um show de música clássica em plena tarde de quinta-feira na linha A. Não importam a raça, a nacionalidade, a conta bancária ou o credo. Uma vez que estamos no metrô, somos todos iguais.

Há alguns meses, o metrô lançou a campanha “If you see somethinhg, say something” (Se você vir algo, diga algo), com a intenção de fazer com que os passageiros comuniquem às autoridades de cada estação a desconfiança sobre pessoas e até embrulhos “suspeitos”. Difícil é saber o que seria um suspeito na cidade mais cosmopolita do mundo. Um embrulho do McDonald’s largado no banco? Um trabalhador árabe de turbante? Uma gangue de adolescentes do Bronx com o rádio nas alturas? Uma mulher de cabelo verde, meia arrastão e 98 piercings na face? Uma repórter brasileira que anota tudo o que vê? Se alguém se importar em “say something”, passará o dia no metrô. Sem contar que os vagões mais parecem bibliotecas: cada um mergulha na leitura, dorme ou escuta seu iPod. Sem olhar para frente ou para o lado, o máximo de diálogo que se ouve é o imperativo “excuse me”. Uma charge publicada na capa da revista “New Yorker”, em março de 2003, chegou a mostrar um vagão lotado, no qual uma mulher lê o “New York Post” e o cidadão ao seu lado ronca enquanto um turista tenta desvendar o mapa do metrô. Vestido de roupa militar, turbante e usando barba, o tal turista é Osama bin Laden. Mas quem, no metrô de Nova York, tem tempo ou curiosidade para notar um detalhe destes?

Quem pula a roleta é preso

O tal mapa não tem mistérios. Basta saber contar até 200, e diferenciar norte de sul. Os trens sobem e descem os 1.062 quilômetros de trilhos. As linhas são designadas por cores e as estações são numeradas. O passe de uma viagem custa dois dólares – com previsão de aumento; há cem anos, valia cinco centavos. Por este preço, pode-se circular por todas linhas do metrô – experiência quase equivalente a uma viagem pelo mundo. Seus vagões alcançam o aeroporto JFK e passam sob o bairro indiano no Queens, o bairro de judeus ortodoxos no Brooklyn, a região de dominicanos no Harlem, o bairro gay (Chelsea) em Manhattan e o Zológico do Bronx. Além disso, grandes pontos turísticos, como o Lincoln Center, o Museu de História Natural e o Rockefeller Center têm suas próprias estações (o World Trade Center também tinha a sua). Os 6.200 trens em circulação têm ar-condicionado e, a cada estação, o condutor repete o mantra: “Stand clear from the closing doors” (Fique longe das portas, que fecham automaticamente”).

Nova York tem 468 estações de metrô (277 subterrâneas), mas nem todas são convidativas. Muitas são sujas, têm infiltração no teto, abrigam inofensivos mendigos, são mal sinalizadas e, no verão, ganham de qualquer spa no quesito sauna a vapor. A dívida do sistema de transporte da cidade, estimada em 436 milhões para 2005, é um assunto constante nos jornais. Sugeriu-se até a venda das estações para empresas privadas. Há poucas semanas, pegar um metrô na estação Starbucks e descer na Sony perigava se tornar realidade. Mas, mesmo sem a privatização, as reformas estão acontecendo gradativamente, feitas com belíssimos mosaicos. Já a violência é rara. Em 2003, registraram-se quatro assassinatos e 257 assaltos. Uma das táticas contra a criminalidade adotadas por Rudy Giuliani, enquanto prefeito, foi prender aqueles que pulavam as roletas. Desta forma, chegava-se a criminosos de uma forma mais rápida pois, segundo ele, “quem pula roleta quase sempre está em fuga”. As principais estações também são constantemente controladas por policiais - muitos deles, à paisana.

Em uma das viagens, a reportagem de NoMínimo ingressou às nove da manhã na estação da rua 59, também chamada Columbus Circle. A barbearia, sem janelas, cobra 11 dólares por um corte. Em plena plataforma, sob uma temperatura senegalesa, um saxofonista toca “Flinstones” (sim, a musiquinha do Yabadabadoo). Na linha D, direção sul, o vagão está lotado - a maior parte dos passageiros é negra. O trem vem do Bronx. O silêncio é total. Estão todos sonados. Uma goteira cai na camisa de um sujeito branco, de gravata, que é prontamente avisado por um rastafari. O trem se esvazia na estação 34, região tomada pelo comércio popular. Depois de descer na estação West 4th, no Village, e mudar para a linha E, também direção sul, encontra-se uma rapaziada mais moderninha e heterogênea. Duas pessoas devoram a seção de artes de “The New York Times”. O silêncio continua, mas ninguém cochila. A maior parte das pessoas desce na Spring Street, estação do SoHo, onde ficam lojas de moda e restaurantes cheios de estilo. O trem continua o percurso até a linha final, a Chambers Street, onde uma mãe e seu filho, turistas, se dirigem à repórter e perguntam onde fica o World Trade Center. Estamos embaixo de onde ficava.

Continuando nossa viagem, na linha C uma funcionária do metrô veste um véu muçulmano combinando com a saia azul-escura do uniforme e um senhor de cinqüenta e poucos anos, camisa branca e maleta de trabalho, lê um jornal em que alfabeto obscuro se mistura a fotos de rabinos. Impossível resistir à curiosidade de abordar o tal senhor. Ele conta que o jornal, em russo, é escrito e impresso em Nova York. Por sinal, todos neste vagão estão lendo, não importa o quê. Na estação 23, entram um mochileiro e uma mulher que, mal se senta, abre a bolsa, tira o alicate e começa a cortar as unhas da mão. Na parada da rua 33, entra a imensa quantidade de gente vindo da Penn Station, estação ferroviária que despeja os que trabalham em Manhattan, mas moram em outras cidades. Continuamos subindo e, na estação da rua 42 com Oitava Avenida, bem embaixo da estação rodoviária, um pianista toca órgão, sorri incessantemente e tenta vender seus CDs ao público.

Subimos até a estação 59. O calor continua para desespero do jornaleiro, paquistanês, que trabalha na plataforma de nove às quatro da tarde. Pertinho dele, um violinista negro tenta ganhar uns trocados e, ao receber um dólar, pára o show para tentar ensinar à repórter a tocar violino. Tragédia. Reembarcamos na linha vermelha, direção norte. Esta linha transita pelo sofisticado Upper West Side, passa pela Universidade Columbia e segue para o Harlem. Entra um sujeito engravatado e perfumado, saúda o público, diz que não quer incomodar, tampouco pedir dinheiro (como fazem muitos), mas gostaria de saber se alguém tem interesse em olhar o seu curículo. É um profissional de marketing desempregado. Ninguém se manifesta.

Bem mais barato do que a Broadway

Uma novidade centenária do sistema nova-iorquino é a linha expressa. Diferentemente dos metrôs de outras cidades, o de Nova York, desde a inauguração, dispõe de linhas que param apenas nas principais estações e, assim, cruzam a cidade em poucos minutos. A linha A é uma delas. No vagão, direção norte, está uma senhora dominicana, que volta da faxina na casa de uma madame rumo à estação da rua 190, no Harlem. Saboreando uma gelatina (embora seja proibido comer no metrô), ela tira o sapato, diz que o pé está machucado e conta que mora em Nova York há 30 anos. Trouxe os doze irmãos e, fazendo faxina, criou duas filhas - ambas, universitárias. Os espaços publicitários do vagão são tomados pelo anúncio do “El Vacilón de la Mañana”, programa dos locutores Luis Jimenez e Moonshadow, da rádio Mega 97,9 FM. Afinal, estamos em uma das regiões mais pobres de Manhattan, onde a língua-mãe é o espanhol. Ainda assim, um casal de turistas a caminho do Cloisters (museu de arte medieval), conversa calmamente, segurando suas filmadoras de última geração. Na volta, depois de termos chegado ao ponto final da linha A, na rua 207, uma japonesa lê “O Pianista”, um rapper divide um banco com um judeu ortodoxo, uma criança berra em espanhol e uma jovem obesa esparrama-se por três assentos. Na estação da rua 125, entra uma loira cujo cabelo rastafari faz inveja a qualquer imitador de Bob Marley. Ela lê o jornal “AM”, um dos dois matutinos distribuídos gratuitamente nas estações de metrô. O outro é o “Metro”.

Uma das linhas mais ecléticas é a amarela, que acompanha subterraneamente a Broadway, a maior avenida de Nova York. Ela passa pelo Brooklyn, Wall Street, Chinatown, SoHo, e ainda sobe até o Queens, região onde moram gregos, troianos e muitos brasileiros. Ao embarcar na rua 8, estação da New York University, uma chinesa senta ao lado da repórter e fala, sem parar, sobre o Falun Gong, meditação proibida na China. No banco da frente, duas muçulmanas cobertas de cima abaixo seguram um carrinho de bebê e quatro adolescentes indianas ajeitam seus longos vestidos de festa. Em uma outra viagem na mesma linha, do Queens para Manhattan, um homem do leste europeu devora um saco de biscoito – em seguida, joga o próprio no chão. Deita no banco, levanta, abre os braços, encara os passageiros. O sujeito não bate bem. Desce na estação da Avenida Lexington. Ufa. Os anúncios do trem dão dicas do Departamento de Saúde de Nova York sobre a importância de uma dieta equilibrada e de exercícios físicos. A iniciativa seria eficaz se não fosse o anúncio do novo milk-shake do Dunkin’ Donuts no lado oposto do vagão. Outros anúncios ainda vendem serviços de advogados de divórcio e violência doméstica, cursos de inglês e cirurgia plástica. Mas os passageiros ainda se distraem com os cartazes da “Poetry in Motion”, com poesias estampadas nos vagões, ou do “Subway Talk”, com recados sobre a vida no metrô, do tipo: “Doe dinheiro. Mas não aqui”.

Finalmente, estamos na estação mais movimentada do metrô: a Times Square. Neste formigueiro, passam cerca de 167 mil pessoas por dia, incluindo milhares de turistas. Para eles, os anúncios estampados nas paredes da estação divulgam os musicais da Broadway, logo na calçada acima. Mas quem for esperto nem precisa colocar o nariz na superfície. Basta se plantar na estação e assistir ao show do bailarino de salsa que rodopia com cabeludas bonecas de pano ou do músico Lorenzo La Roc, que tira o som de um violino elétrico transparente. Ainda há o velhinho que toca órgão, acompanhado por bonecas e soldadinhos de brinquedo que rebolam ao som de sua música. Estima-se que um artista ganhe US$ 70 por dia se apresentando nas plataformas de metrô. Mas, segundo o “New York Times”, esta quantia caiu para US$ 24 depois de 11 de setembro. Diminuíram os turistas e aumentaram os bolsos furados. Quem tiver sorte ainda pode topar com uma gangue de bailarinos de break. Eles fazem o coração de qualquer passageiro parar mostrando acrobacias olímpicas em pleno vagão. Ou, então, pode escutar um saxofonista americano tocar “Garota de Ipanema” na hora do rush, depois de um dia estressante. Tudo isso, pela bagatela de dois dólares. É difícil imaginar que ainda exista quem pague $80 por um show na Broadway.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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