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Meu apê virou estúdio de TV
12.abril.2005

Tania Menai, de Nova York

Era tarde da segunda-feira quando Chris, produtor de locação do seriado “Law & Order”, bateu na minha porta, aqui em Nova York. “Estaremos filmando um episódio do programa nesta quarta-feira na casa da sua vizinha. Precisamos do seu apartamento para colocar o equipamento, o monitor e cerca de oito pessoas. Oferecemos 500 dólares.” Convidei-o para entrar e mostrei meu estúdio, tipicamente nova-iorquino: um espaço de mais de cem anos, teto alto, janelas grandes e cerca de 35 metros quadrados. “Oito pessoas? Olha o tamanho disso aqui!” - disse-lhe, incrédula. “Já estivemos em lugares bem menores”, ele me respondeu. Fiquei, então, de pensar na proposta.

Foi aqui, em Nova York, que Harry beijou Sally, que King Kong se pendurou num arranha-céu, que Superman voou com sua amada nos braços. Também foi aqui que rolou tudo, tudinho, naquelas nove semanas e meia de amor, que os caça-fantasmas foram aplaudidos por uma multidão, e que, claro, se esqueceram de Macaulay Culkin. Nova York só perde para Los Angeles como a cidade mais filmada dos Estados Unidos, talvez do mundo. Mas a comparação nem vale, pois a cidade californiana nasceu para isso – e, no final das contas, tem estúdios que replicam os cantinhos desta cidade de Frank Sinatra. Nova York atrai todas as lentes simplesmente por ser o que é. É verdade que, nos últimos anos, os custos para filmar aqui - longa-metragens ou seriados para TV – alcançaram níveis estratosféricos, afugentando diretores que chegaram ao cúmulo de filmar a “silhueta de Manhattan” em Toronto e a vida do ex-prefeito Rudolph Giuliani em Montreal.

Para trazer toda essa indústria de volta, em agosto do ano passado, o governador do estado de Nova York, George Pataki, deu sinal verde a uma série de leis de incentivos fiscais para a indústria de filme e TV. Apesar de ter cortado os custos do estado em 1,8 bilhão de dólares na época, ele deixou intactos os recursos para os setores de filme e TV. A nova lei libera 100 milhões de dólares nos próximos quatro anos – ou 25 milhões anuais – para reduzir os custos de filmes e projetos de televisão produzidos em Nova York. Mais 12,5 milhões de dólares serão despejados em benefícios fiscais para produções na cidade. Afinal, se os preços de locação e produção continuassem agregando zeros à direita, até King Kong teria que balançar num prédio em Kuala Lumpur.

Certamente, a mamata tem a contrapartida de exigências aos produtores. Só se beneficiará da lei quem filmar pelo menos 75% de sua produção no estado nova-iorquino. Ou seja, não adianta filmar a porta de um restaurante, escritório ou edifício residencial, e depois alugar um estúdio em Los Angeles para gravar o que acontece nos interiores. “A cidade de Nova York sempre ofereceu à indústria cinematográfica as locações mais incríveis do mundo – e esta nova legislação torna ainda mais atraente filmar nos interiores da cidade”, diz Katherine Oliver, responsável pelo setor da prefeitura que lida com filmes, teatros e programas de televisão em Nova York. Segundo ela, a produção de cinema e televisão em Nova York emprega 100 mil profissionais e contribui anualmente com 5 bilhões de dólares para a cidade.

A lei não vale para comerciais. Aplica-se apenas às produções de longa-metragens, filmes para televisão, pilotos e episódios de seriados. Ou seja, é ideal para os woody allens e spike lees que amam esta cidade. Os incentivos foram bem recebidos pelos sindicatos, incluindo o dos atores, associações e estúdios que fornecem equipamentos para filmagens. “Temos o compromisso de manter nossa posição competitiva neste setor”, acrescenta Katherine.

Quando se pensa em seriados para a televisão em Nova York, “Seinfeld”, “Friend” e “Sex and the City” vêm logo à cabeça. Mas a dura verdade é que “Seinfeld” e “Friends” foram gravados descaradamente na ensolarada Califórnia. O “Central Perk”, lanchonete de “Friends”, nunca existiu. Já Seinfeld fazia exatamente o que o governo nova-iorquino quer aniquilar: filmava a fachada do Tom’s Restaurant, na esquina da rua 112 com Broadway, e gravava as cenas interiores em um cenário fictício que chegou a ser exposto no Museum of Moving Image, no Queens. Por essas e outras é que a lei foi criada. E parece estar dando resultados. Estima-se que, até 2008, a cidade receberá 2 bilhões de dólares extras deste setor. A revista “Moviemaker” acaba de declarar que Nova York é a melhor cidade para diretores independentes viverem e trabalharem.

Meu contrato com a Universal Network Television

“Sex and the City”, foi, sem dúvida, o seriado de televisão que mais usou e abusou das ruas, restaurantes, lojas e parques da cidade. Tanto, que chegou a ganhar um guia em português com os endereços do programa, preparado pela jornalista Teté Ribeiro e pela fotógrafa Mabel Feres. O seriado já terminou, provavelmente sem fisgar as vantagens da nova lei. Mas duas outras produções já divulgaram que estão usufruindo da novidade: os seriados “Jonny Zero”, do canal Fox, e “Law & Order” da NBC. Este último, exibido semanalmente há 15 anos, trata de crime, polícia e tribunal. Exibido no Brasil com o título “Lei e Ordem” (no canal Universal), é filmado inteiramente nas ruas e interiores da cidade. Por interiores, entendam-se também os apartamentos de pessoas comuns.

Moradores são convidados – por um bom dinheiro – a se retirar de seus apartamentos durante alguns dias para que sejam invadidos pela equipe de filmagem. Os móveis são retirados e guardados em um depósito. Se o apartamento sofrer qualquer arranhão, a produção do programa compromete-se a pintá-lo. Os apartamentos vizinhos também não ficam de fora. São usados como estúdio para abrigar os diretores, atores, a produção e a parafernália tecnológica. Obviamente tudo é feito dentro da lei, com documentos previamente assinados. Com autorização do administrador do edifício, qualquer apartamento pode, um dia, sofrer uma invasão dessas. Inclusive o meu.

Depois de receber a proposta do produtor de locação do seriado “Law & Order”, consultei alguns amigos – que nunca viram maneira mais fácil de ganhar dinheiro – e topei. Afinal, este apartamento, também apelidado de “ninho”, além de uma pacífica vida conjugal, já comportou uma festa para nove estudantes. Bater este recorde poderia ser a chance de uma menção no “Guinness”.

No dia seguinte à proposta de Chris, seu assistente Jacob entrou e saiu da minha casa umas cinco ou seis vezes. Em uma delas, trouxe um contrato da Universal Network Television, no qual constava o meu nome, endereço, valor do pagamento e nome do episódio “In God We Trust” (alusão à frase escrita na nota de dólar), que irá ao ar no dia 11 de maio, nos EUA. O contrato falava que a equipe teria cuidado “razoável” com a minha propriedade, e mais algumas cláusulas que os protegem – é claro. Assinei.

Já na terça-feira, a portaria do prédio e o elevador foram revestidos com papelão. Duas placas amarelas de papel emitidas pela polícia foram coladas em um poste da esquina anunciando aos motoristas que, entre as cinco da manhã e as dez da noite da quarta-feira, a quadra inteira estaria indisponível para estacionamento. Veículos que desrespeitassem a ordem seriam removidos. As placas indicavam ainda o nome do programa e o episódio.

Por que fechar uma quadra inteira com tanto rigor? Porque, às cinco da manhã da quarta-feira feira, cerca de doze caminhões aportaram aqui. Dois eram camarins, um era uma lanchonete, o quarto carregava móveis, outro trazia fiações... e por aí vai. Na porta do prédio, duas cadeiras de tecido, estilo Hollywood, revelavam o nome dos atores: Denis Farina e Michael Imperioli.

Jacob chegou ao meu prédio às cinco da manhã, mas fez o gentil favor de só me chamar às 10, para avisar que a equipe chegaria a uma da tarde. Desliguei o som do telefone, a pedido da produção. Também tirei todos os badulaques quebráveis do caminho, incluindo uma cadeira que seria atropelada pela equipe. Enquanto isso, na porta ao lado, o apartamento da vizinha, já totalmente vazio, estava sendo decorado pela equipe do “Law & Order”.

Um multidão em meu ninho

O andar estava tomado: fios para cá, fios para lá, câmeras, refletores, pessoas servindo sanduíches, atores coadjuvantes, uma mulher grávida sentada fazendo tricô – um total de 40 profissionais, quase todos no corredor. “O Projac é aqui”, pensei. Deixei a porta aberta, e começou o entra-e-sai. Caixas imensas, incluindo a claquete, pousavam ao lado da cama. Depois, vieram o monitor e caixotes de madeira acolchoados, que serviam como cadeiras para o diretor, David Platt, e seus assistentes. O resto da equipe sentou-se ao lado da pilha de casacos que se acumulou na cama. O número de pessoas ia crescendo até que resolvi contar – em dado momento, o conclave reunia 12 pessoas em meu ninho.

A cada cinco minutos, entrava uma cara nova. Alguns observavam a casa, os livros, os guias de viagem, e principalmente, a coleção de fotos preto-e-branco. Outros se distraíam com a televisão, ligada no canal local, sem som. Comentavam o exagero da cobertura sobre a morte do Papa. A assistente do diretor reparou que o meu negócio era balé e engatou uma conversa, contando que foi bailarina até os 30 anos, mas, depois que começou nesta carreira, nunca mais teve tempo para fazer uma aula. Outros me perguntavam sobre o Brasil. “Nunca conheci um brasileiro antipático”, disse um deles.

Certas perguntas eram menos saborosas: “Onde há uma tomada para a gente usar?” ou, pior, “Posso usar o seu banheiro?” Enquanto um figurante, sentado na cadeira da escrivaninha, me contava em espanhol que é de Porto Rico, um produtor americano - vestindo uma camiseta em que se lia “Renzo Gracie, Jiu-Jitsu, Rio de Janeiro” - entrou pedindo silêncio para o ensaio.

Em seguida, chegaram dois homens de sobretudo. Quando fiz a clássica pergunta de anfitriã - “Posso tirar o seu casaco?” -, a resposta veio inesperada: “Obrigado, mas vamos usá-los no set”. Tratava-se de Denis Farina, o ator principal do seriado, e Michael Imperioli, estrela de “Sopranos”, outra série americana. Os dois entraram, sentaram, e ficaram batendo papo com o diretor. Uma vez no set, ou seja, no apartamento ao lado, as cenas eram acompanhadas pelo diretor e mais umas nove pessoas no monitor instalado aqui no meu apê.

A cena mostra Farina e Imperioli entrando no apartamento em busca de um criminoso que havia provocado um incêndio proposital. O criminoso não está em casa, mas a dupla cheira o casaco do suspeito e detecta o odor de gasolina. Depois, os dois reviram a casa e acham duas peças relevantes para a trama: uma camisinha, alojada no bolso do tal casaco, e um DVD de “Pretty Woman”. A mesma cena, mostra um coadjuvante que interpreta o zelador. Gordinho e engraçadíssimo, suas expressões faciais arrancaram boas risadas de toda a equipe. Logo, logo, todos tiveram que se conter pois ninguém pode soltar um pio durante a gravação.

A cena foi gravada diversas vezes, de diferentes ângulos. Depois, Imperioli voltou para cá e ficou batendo papo com a equipe – e comigo.

O que ninguém sabia é que tudo estava sendo acompanhado, via Internet, graças a uma webcam do MSN Messenger, por amigos meus que vivem em Montreal e Florianópolis. Ambos conhecem o apartamento e ficaram surpresos com a movimentação. “Que galera!”, escreveu um deles. Minha mãe também enviou uma mensagem perguntando se existe algum “milagre da multiplicação de espaço”. E ainda deu uma cutucada na filha: “Se eles procuram lei, eu entendo. Agora, ordem? Na sua casa?”

No final da cena, a equipe se transferiu para outro andar, deixando os casacos, malas e caixas aqui. Ainda filmaram a cena do incêndio no terraço do prédio, que tem oito andares. Quando saí de casa, no fim da tarde, a produção continuava na ativa. Nas escadarias, coadjuvantes uniformizados de polícia nova-iorquina esperavam sua vez enquanto um produtor ficava na portaria mandando todo mundo se calar durante as gravações. A rua continuava tomada por caminhões e produtores. Voltei para casa às onze da noite, encontrando a calçada vazia, um silêncio transcendental e nenhum resquício de um dia de trabalho.

É assim que os americanos gostam: tudo dentro da mais perfeita lei e ordem.



[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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