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Beach Culture
13.fevereiro.2007

Como era o padrão estético das garotas dos anos 60? Mudou o jeito de se relacionar com a praia, 40 anos depois? Perdeu-se a inocência? Um baú de velhas imagens de Ipanema encontrado por um americano num brechó carioca nos ajuda a revelar essas questões.

Tania Menai, de Nova York Fotos Orizon Carneiro Muniz (direitos reservados)

Manhã de sábado na Praça Quinze, no Rio de Janeiro. Estamos em julho de 2003. Peter Lucas, flana entre as barracas da feira de artesanato. Professor de direitos humanos e mídia da Universidade de Nova York, Peter é um americano com sede de cultura brasileira. Seus olhos estrangeiros, muitas vezes, enxergam o Brasil com certo frescor e alguma poesia. Numa parte da feira, vendedores mais humildes oferecem peças antigas, muitas achadas na rua. Ali, Peter esbarrar com fotos preto e brancas, de forma quadradas, daquelas que lembram os albúns onde ainda se colavam cuidadosamente cada uma delas. Eram duzentas, ali, sem dono, à venda.

Para usa surpresa e deleite, muitas, revelavam imagens de mulheres na praia de Ipanema. Os biquinis, os óculos, os penteados, e também as datas marcadas nas laterais das fotos, indicam que tratava-se do verão entre 1962 e 1963. O vendedor conta que dias antes ele havia comprado as fotos numa calçada da Lapa, de um homem que havia as encontrado no lixo. Não havia negativos ou forma de saber daonde elas vinhas. Ainda assim, Peter comprou todas elas. Sentado num restaurante do Village, em Manhattan, em outubro passado, ele comenta que o fim de verão tem sempre aquela sensação de melancolia e de mortalidade – algo que também acontece com as noites de domingo. “Mas aquele não era qualquer verão,” diz ele, entre goles de cerveja. “Aquela era a ‘última hora do verão’- a calma antes da tempestade,” repara. Sim, o último verão antes do golpe militar de 1964. Ele repousa seu laptop sobre a mesa do restaurante e revela as imagens, ainda inéditas para a imprensa. Elas são lindas, estonteantes, megestais. Retratos de quando “Ipanema era só felicidade,” como cantava o mestre Jobim.

“O termo ‘último verão’ é tremendamente apropriado,” diz o jornalista Zuenir Ventura, personagem de Ipanema, que trocou Minas pelo Rio lá se vão alguns bons carnavais. “O golpe aconteceu em março de 1964, roubando toda a inocência da época”, diz ele. “Lembro de ir à casa de amigos em Ipanema, naquele ano, e apostar quanto tempo a ditadura iria durar. Alguns chutavam um mês, dois meses. O chute máximo era de um ano”. Zuenir conta que aquela ainda era uma Ipanema provinciana, carismática, nada cosmopolita. A praia do momento era Copacabana, a princezinha do mar. Ipanema ainda nem sonhava em ser “mito planetário” ou uma “vanguarda de comportamento” nas palavras de Zuenir. Mas o bairro já reunia intelectuais que cultivavam a ingenuidade característica da virada da década de 50 para 60. Debatiam o que Zuenir chama de uma “preocupação tranqüila”: achavam que levar a cultura para as favelas resolveria os problemas de desigualdade. Ele lembra que a favela era cantada; morar no morro era “morar perto do céu.” O Rio ainda era despido de tragédias sociais – a temática era a cultura própria, as questões existenciais. “Era tudo muito bucólico, esta era a crônica visual da época,” reforça Zuenir, ao lembrar da Bossa Nova do amor e do barquinho.

Foi em 1962 que a tal garota de corpo dourado do sol de Ipanema tornou-se a coisa mais linda que Vinicius e Tom viram passar. A canção “Garota de Ipanema”, foi apresentada pela primeira vez na boate Au Bom Gourmet, em Copacabana, cantada por João Gilberto e o grupo vocal Os Cariocas. No final daquele ele, Tom Jobim cantaria aquela canção no Carnegie Hall, em Nova York. Mas, afinal, quem seriam aquelas mulheres das fotos? E o fotógrafo? Seria ele um profissional? Por que as fotos estariam ali, praticamente abandonadas numa feira de antigüidade, disponíveis ao primeiro passante interessado? Ao julgar pelos escritos no verso de algumas delas, Peter imagina que todas tenham pertencido a um só fotógrafo. Algumas foram feitas por um amigo dele. Mas por que este fotógrafo teria se desfeito delas? Sim, sabemos que trata-se de um fotógrafo, um homem, pois há dois auto-retratos, feitos através do espelho. A foto indica, inclusive, que o modelo da câmera utilizada era um tanto sofisticada para a época: uma Yashika bi-reflex, na qual duas lentes são montadas uma sobre a outra. “Há algo de amadorismo, algo intimista nestas fotos – parece-me fotos de amigos nos fins de semana,” diz Peter. Para matar mais esta sede, Peter buscou o historiador carioca Maurício Lissovsky, que, além de se dedicar a fotografia, é professor e roteirista de filmes como “Seja o que Deus quiser”, de Murillo Salles e “A pessoa é para o que nasce,” de Roberto Berliner.

A missão de Maurício é desvendar a realidade social das fotos e a relação entre o fotógrafo e o tema. Entre as 200 imagens, muitas delas de gatos também, uma se diferencia: a de um dentista. No verso, lê-se Lauro Sued. Para o historiador, esta foi a peça-chave por ser única. “Fernanda Lobianco, uma pesquisadora que está nos ajudando, entrevistou algumas moradoras antigas de Ipanema”, conta Maurício.“Ao mostrar algumas fotos para elas, uma senhora reconheceu o dentista, que hoje tem mais de 80 anos”. A tal senhora deu o endereço à Fernanda, que foi até ele em busca da identidade do fotógrafo. E encontrou. Não só Lauro Sued foi dentista do fotógrafo por mais de 30 anos, como chegou a ir em seu enterro, em março de 2001. Tratava-se de Orizon Carneiro Muniz. Nasceu no dia 19 de outubro de 1926 e foi admitido como advogado do BNDES em 1956, acredita Maurício. Morava na rua Barão da Torre 85. Era filho único e solteiro. Não deixou dependentes. “Era pacato, inteligente, intelectual, mas de papo-agradável, amante de música clássica”, conta Maurício, acrescentando que sua mãe chamava-se Dona Franscisquinha, ou Nenezinha. Orizon tinha semiparalisia, atrofia nas duas pernas, o que indica poliomielite. Mancava, não dirigia e usava muletas canadenses. Fotografava por hobby. E mais: não freqüentava a praia.

Até agora, nenhuma mulher foi identificada. Ainda assim, o verso de algumas revelam nomes: Amanda, Cecília, Lígia, Nelly. “Não conseguimos ler o nome de todas,” conta Lucas, ao dizer que a letra de Orizon é difícil de decifrar. “Chegamos a pensar que seu nomo era Antônio. Até que um dia, pegamos uma lupa para ler o verso de sua foto para descobrir que o escrito não é ‘Antônio’ – mas ‘auto-retrato’.” Orizon era um apaixonado por Ipanema. Tanto, que no fim da vida, escrevia um livro sobre a história cultural do bairro. “Estamos atrás deste material,” diz Lucas.As pesquisas ainda estão em andamento e resultarão num livro e numa exposição – com conceito de Peter e texto de Maurício - intitulados “A última Hora do Verão.” Peter quer ressaltar a beleza efêmera, a perda da juventude e atraente tristeza que o verão carrega. Maurício continua em busca de amigos e associados que possam revelar quem eram as garotos de Ipanema e outros personagens das fotos.

“Aqueles foram anos de rompimento. As mulheres começaram a ir à praia sozinhas – algo impensável na década de 50,” lembra-se Cesar Menai, meu pai, um carioca de 71 anos, bom entendedor de garotas de Ipanema, apesar de ter casado com uma paulistana – e que, até hoje, joga vôlei nas areias do Leblon, bairro vizinho. Cesar fala de uma Ipanema que era considerada “longe”, onde os prédios não podiam passar de cinco andares e que reunia intelectuais fugindo do agito de Copacabana. “Foi no começo da década de 60, que as mulheres passaram a usar calça comprida, de boca-de-sino e saint-tropez - e também o chamado maiô de duas peças”, diz ele, profissional de moda feminina. “Ainda assim, calça comprida era proibida em repartições públicas e biquinis eram banidos em vários clubes – formavam-se comitês para aprovar ou desaprovar estes biquínis”, recorda. “Basta lembrar da foto da atriz Leila Diniz, uma grávida de biquini, que chocou muita gente quase dez anos depois, em 1971.” Cesar ainda fala do monoquini, uma espécie de suspensório que, segundo ele, “não cobria praticamente nada da parte de cima.” O tal do monoquini foi – de fato – notícia. Chegou a ser nome de canção de Roberto Carlos, na década de 60. Intitulada “Eu sou fã do monoquíni”, ela diz assim: “Não posso nem contar o que vi/ Mas sei que nunca esqueci/ Broto tem que usar monoquini/ Não suporto mais o biquini.”

Cesar diz que naquela década as mulheres entraram no mercado de trabalho de uma nova forma – passaram a ser donas de butiques, por exemplo, ou exercer cargos menos dependentes de homens. Durante os anos da ditadura, lembra ele, a economia ficou estável o que permitiu a elas trabalhos sem volatilidade. “Por outro lado, com a ditadura, acho que a intelectualidade ainda estava reservada aos homens, já que elas tinham acabado de se libertar” nota ele. No livro Os Homens são necessários?, a colunista do New York Times, Maureen Dowd, diz que na década de 60, a feminista americana Gloria Steinem queria que as mulheres deixassem de ser os robôs de avental que eram na década de 50 – aquela postura da mulherzinha. Os anos sessenta mudou esta postura. “Mas hoje as próprias mulheres querem voltar a ser as ladies da década de 50,” diz Maureen, que vive em Washignton DC. Feminismo, ditaura, revoluções e a volta para o lar. Ao longo destes anos, Ipanema passou a ser bairro do mundo, as mulheres perderam muito de suas curvas e os biquinis um bocado de tecido. “Aqueles biquinis eram mais sensuais, há de haver mistério no sexo,” nota Zuenir, que retira inspiração de seus escritos ao caminhar todas as manhãs pelo calçadão da faixa de areia mais poética da Terra.

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Acompanhe o follow-up desta matéria em março no site da TRIP, www.trip.com.br


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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