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Deu na Margalit Fox
05.agosto.2007
Ela escreve sobre a vida dos que foram...e que merecem ser notificados no obituário do New York Times
Tania Menai, de Nova York
Era uma manhã de terça-feira, quando Margalit Fox me recebeu na cafeteria do novo prédio do New York Times, em Manhattan. Brincos longos, calça branca e blusa preta, ela mostra a vista do 15º andar e brinca: “oferecer um café daqui para uma brasileira é quase uma ofença.” Mas ao conversar com esta escritora – duplamente diplomada em linguistica, além de inglês e jornalismo, incluindo mestrados - ninguém liga para café. Repórter do jornal há 13 anos, Margalit está há três na sessão de obituários do jornal – antes, escrevia sobre livros. Este mês, inclusive, publica seu primeiro, Talking Hands, sobre linguagem de surdos. Simpática, dinâmica e bem articulada, Margalit é casada com um também escritor. Vivem em Manhattan – e não morariam em nenhum outro lugar dos Estados Unidos. “A escritora Susan Sontag dizia que esta é a cidade mais européia da América do Norte”. Margalit nasceu em Long Island, não longe daqui – seu pai era professor de física da faculdade local. Judia, mas não religiosa, conta que nem seu trabalhou colaborou para uma espiritualidade maior. Não acredita em Deus, muito menos em vida após a morte. “Puxei o lado racional-cartesiano de um pai cientista”. Seu trabalho não a tornou mais beata. No entanto, acrescentou um aspecto sobre sobre a forma que vê sua própria morte: “agora sim espero ganhar um obituário no New York Times”. E o que ela gostaria nele? “Que diga que fui boa jornalista, justa e que, idealmente, eu tinha estilo”.
Obituário não é anúncio pago. É um relato sobre a vida de quem partiu - algo que os americanos levam a sério, pois trata-se da última matéria a ser escrita sobre o morto. Recentemente, foi lançado nos EUA o livro “The Dead Beat”, de Marylin Johnson, sobre os “prazeres do obituário”. Sim, diz-se que muita gente lê a página que anuncia quem se foi antes de mesmo de ler as manchetes. Uma mistura de curiosidade com um pouco de sadismo: “veremos quem morreu – sei que não fui eu.” Há também os que vão checar se eles próprios não estão lá. Nunca se sabe. Segundo Margalit, nunca se leu tanto esta página – e por duas razões: com a Internet, cada vez mais gente têm acesso a elas. Além disso, aqueles que nasceram na época do baby boom, estão envelhecendo. E é muita gente, que fez muito. Ela diz que a sessão de obituário e a de esportes são as mais narrativas do jornal – no caso dela, é um conto sobre a vida de alguém, do berço à tumba. “Há um ditado judaico que diz Por que Deus criou a humanidade? Porque Ele adora histórias”, diz ela. Há outra maneira de mostrar mudanças sociais. Margalit lembra que até pouco tempo atrás, os obituários não revelavam a causa da morte. Mas havia formulas: Pequena doença significava ataque cardíaco. Longa doença, câncer. Suicídio jamais era mencionado. Hoje, menciona-se inclusive a AIDS.
Margalit chega no jornal ao meio-dia, por volta das três e meia começa a escrever e às sete da noite entrega o texto pronto. Pela manhã, seu editor, que senta à sua frente, já tem os nomes do dia e os clippings do próprio jornal sobre os mortos em questão – coisas antigas, muitas vezes publicada nas década de 30 ou 40. Depois de ler, ela pesquisa minuciosamente sobre a vida dos cidadãos no vasto recurso online. “Não sei como isso era feito antes da Internet,” confessa. E então chega o momento que qualquer repórter evita: falar com a família. Mas a coisa não é tão macabra assim. “As famílias já esperam nosso telefonema – e são muito gratas. Isso confirma que o falecido era importante o suficiente para interessar ao New York Times”, conta. “No começo, temia ser intrusa – sou tímida, como grande parte dos jornalistas”, lembra. “Contudo, muitas vezes é a própria família que nos avisa sobre a morte, por telefone, e-mail ou fax – e, claro, os famosos têm relações públicas”. Sim, todos soam tristes, muitos choram ao telefone. Ao falar com eles, Margalit é gentil - mas dentro dos limites profissionais. Ela deixa claro que está ali como repórter, e não como conselheira de luto. “Na verdade, as pessoas ficam decepcionadas quando o New York Times não telefona”, revela. Mas, estatisticamente, é impossível colocar todo mundo no obituário do Times: dois milhões de americanos morrem por ano – e só há espaço para 1.200 ou 1.300 deles. Isso é menos de 1%.
Ainda assim, tanto ela quanto seus dois editores e os outros três repórteres do time, lembram às famílias dos falecidos que os obituários não são elogios. “Deixamos os panegíricos para os padres e rabinos. Obituários noticiosos são como os demais artigos do jornal”. Dito isto, ele tem de ser equilibrado. Margalit aponta que é comum encontrar por ai obituários quase vitorianos, infestados de clichés como: “ele morreu rodeado por sua amada família”, “ele tocou a vida de todos os que lhe conheceram”, “nenhum problema era pequeno para este homem maravilhoso”. Pior impossível. “Não podemos e não fazemos isso”, afirma. “Há maneiras objetivas de dizer que alguém era maravilhoso”. Outro ponto importante é ir contra a maré cultural que transforma bandidos em mocinhos assim que eles batem as botas. Se em vida o cidadão não era o melhor dos cristãos, na morte assim ele continuará. E é aí que as famílias se decepcionam. “Poucos meses atrás, ouvi um colega que senta ao meu lado dizer a algum membro de família, bem gentilmente, que ele teria de incluir os quatro meses em que o falecido esteve na cadeia”, lembra Margalit. “Tratava-se de alguma figura pública, e era sabido que ele foi parar atrás das grades por algum crime de colarinho branco”. Ela ressalta que o jornal não representa a família. “Se alguém da Casa Branca morrer, não falamos pela Casa Branca. Como repórteres, mantemos a distância”.
“Oscar Wilde dizia que só há uma notícia ruim, o obituário. Não concordo – se fosse assim, não teríamos tantas famílias lutando por isso”, lembra Margalit. Ao contrário do que se poderia pensar, deixar o caderno de livros do jornal para escrever daqueles que passaram para o andar de cima foi, na verdade, uma grande promoção para Margalit. Ela começou cobrindo férias de verão de um repórter, corrigindo texto alheio. “Fiquei um pouco desapontada com o trabalho - mudar vírgula certamente não é um dos desafios mais intelectuais”, comenta. “Mas se o New York Times te chama para trablahar, você seria um idiota em recusar. Agarre o que eles oferecem e tenta trilhar o seu caminho no jornal”, diz ela, que diz-se sortuda por ter feito parte da sessão literária durante os primeiros anos. “É um ótimo lugar para trabalhar, cercada de livros, bons colegas e ótimas conversas – mas nunca desisti do meu sonho de ser uma escritora.” Um dia, um dos editores tornou-se editor do obituário então Margalit passou a escrever textos para ele, como freelancer. Oito anos mais tarde, surgiu uma vaga na sessão – ela tentou e conseguiu.
O jornal tem mais de mil obituários prontos, esperando a morte de famosos –nomes jamais divulgados. Eles são escritos por todos os jornalistas do New York Times – os atletas ganham obituários por jornalistas esportivos, atores por jornalistas do caderno de cultura e por aí vai. Mas quanto aos menos célebres, ou menos óbvios, cabe aos editores bater o martelo final sobre quem entra na página - é um trabalho doloroso, segundo Margalit. Eles têm de explicar calmamente às famílias que “sim, o seu pai era muito especial, mas para os padrões de uma cidade grande, e de um jornal de circulação nacional, ele não era notícia.” Algumas famílias entedem, outras não. O espaço é tão pequeno que, com sorte, os obituários chegam a seis por dia. Por isso, não há obrigação de publicá-los no dia seguinte à morte. Até porque, muitas famílias não avisam o jornal imediatamente – seja por tristeza, ou por tempo gasto com obrigações burocráticas. E estrangeiros, tem vez? “Só se for o que chamo de presidente ou rei”, diz Margalit, “além daqueles que alcançaram de alguma forma o público americano e internacional do jornal”. O escritor Jorge Amado, o fundador da Folha de S. Paulo, Otávio Frias, e até o ator Jece Valadão tiveram a glória.
Os obituários seguem o mesmo padrão: dia e local de nascimento e morte, causa do falecimento e o crucial: quem confirma o ocorrido. Isso depois de uma vez que uma bailarina russa ganhou um obituário em vida – vale ressaltar que a Margalit não trabalhava lá quando a gafe ocorreu. Menciona-se ainda a escolaridade e nome de familiares. E a partir daí, cabe o talento do autor pescar informações com conhecidos e elaborar um texto elegante e o mais correto possível – afinal não foi e não será checado pela pessoa em questão. Margalit escreve cerca de 150 obituários ao ano. Encanta-se por alguns e conta que só chorou uma vez. Tratava-se de um dos dois suicídios (ambos escritores) que ela reportou. Sim, suicídios são mencionados, por mais doloroso que seja para os familiares. Neste caso, era uma mulher de trinta e poucos anos, mãe de uma criança pequena - achava que tinha tudo, mas atirou em si. “Fechei a porta, e chorei. Depois disso, meu editor, macaco velho do jornal, fez um sermão, pois não podemos nos envolver. Claro que ele estava certo – mas isso seria desumano.” Por outro lado, o sorriso chega com as inúmeras cartas e e-mails de leitores que desconheciam os mortos, mas escrevem delicadezas como: “obrigada por descrever fulano tão bem – gostaria de tê-lo conhecido em vida.” Sendo assim, a turma do céu também agradece.
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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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