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Lixo é relativo
02.abril.2008


Tania Menai

“Os Estados Unidos? Estão falando em recessão? Este país é abençoado! Nunca experimentaram a pobreza”, afirma o ganense Desmond Antubam, 52 anos, um dos faxineiros do Porth Authority Bus Terminal, rodoviária da cidade de Nova York. E lixo ali é o que não falta. Trata-se do maior terminal rodoviário dos Estados Unidos e o mais movimentado do mundo. Operando desde 1950, o Porth Authority é conectado ao metrô, abriga 16 lanchonetes e alarga-se sobre dois quarteirões inteiros de Manhattan, entre as avenidas Oitava e Nona, e as ruas 40 e 42. Logo em frente, figura o novo prédio do jornal The New York Times, obra arquitetônica assinada pelo italiano Renzo Piano. Por dia, contabiliza-se cerca de duzentas mil viagens de passageiros de ônibus, ligando a cidade de Nova York aos subúrbios, e ao resto do país. Gente vai, gente vem. E quase todas elas deixam suas marcas. Mais precisamente, nas latas de lixo da rodoviária. São roupas, brinquedos, jornais inteiros, revistas, tênis, casacos, bicicletas, carrinhos de bebê, rádios, televisões – tudo praticamente novo.

Há 18 anos é ali que Desmond trabalha, de quarta a domingo, de duas da tarde às dez da noite. Quanto de lixo ele vê por dia? Ele solta gargalhadas: “Toneladas, é difícil calcular,” conta ele, saboreando um chá no Starbucks da rua 145, no Harlem, onde vive. Mas ele já viu de tudo. Na época do Natal, por exemplo, uma mocinha falava ao telefone com o namorado, na porta da rodoviária. Aparentemente, a donzela tinha sido esquecida ali pelo seu amado. Ela segurava uma enorme caixa de presente e um buquê de flores. A conversa foi esquentando, o volume aumentando até que ela desliga o telefone na cara do rapaz e joga tudo – o presente, as flores, e o telefone – no lixo. Desmond espera a cena acabar, aproxima-se da moça e diz “Senhorita, o seu telefone foi pro lixo”. E ela responde: “Dane-se você e dane-se aquele imbecil. Foi ele quem comprou o telefone, eu não vou pegar de volta - se ele quiser, ele compra outro”. E foi embora. Desmond pegou o telefone do lixo. O aparelho, que valia mais de 200 dólares, não parava de tocar. Desmond atendeu mas não quis falar com o namorado. Dias depois, o telefone ainda tocava. Desmond decidiu devolvê-lo ao dono – mas mediante a um “prêmio” financeiro. E avisou: “salvei só o celular; as flores e o presente se foram”.

Para Desmond desperdício tem limite. Ele nasceu em Acra, capital da República de Gana, na África. Filho de um escultor famoso no país, ele tem nove irmãos – quatro de sua mãe, e cinco da outra mulher do pai. “Em Gana é permitido ter duas mulheres”, explica. Seu pai morreu quando Desmond tinha 10 anos – foi quando o menino foi apresentado à pobreza. E não gostou. Cursou design gráfico, fez clínica de tênis (conheceu o campeão mundial Yannick Noah) e chegou a morar na Nigéria, país bem mais rico que Gana. Lá, conseguiu um visto para os Estados Unidos. Quando foi buscar, o despachante roubou seu passaporte e sumiu com 1700 dólares seus. Depois disso, Desmond ainda foi deportado da Nigéria junto a milhares de ganenses, por causa de disputa de trabalho com os locais. “Nosso navio era igual aos da época da escravidão.” Mas Desmond voltou para a Nigéria, onde ainda tinha uma conta bancária. De lá foi para Bahamas, onde ficou um ano até embarcar para Nova York, em 1985. Ele cultuava a música americana durante a juventude, por isso Nova York era sua primeira opção – sua segunda, seria a Jamaica, por causa de Bob Marley.

Hoje, ele é pai de três filhos – o quarto morreu no parto, ainda em Gana, antes de sua mulher, de 27 anos, mudar-se para Nova York. Eles mantiveram um casamento a distância por anos; a gota d’água foi a morte do bebê. Ainda assim, o segundo filho, hoje com quatro anos, ficou na África por causa de falta de documentação. “A imigração americana está muito complicada”, lamenta ele, que cria uma filha de 10 anos e outra de dois anos e meio em Manhattan. “Minha filha mais velha dá uma mordida no pão e joga o resto fora. Digo a ela que paguei quase três mil dólares para tirá-la da África, mas nunca lhe ensinei a disperdiçar um pão”, revolta-se. A menina responde que na escola eles são orientados a jogar qualquer resto de comida fora. E assim acontece em todos os restaurantes da rodoviária. Desmond conta que depois das nove e meia da noite é ele quem recolhe os milhares de sacos de comida fresca, não consumida no dia. Tudo vai para o lixo. Ele não cansa de ser abordado por mendigos que pedem para vasculhar os sacos e mais sacos de comida, antes de tudo ser triturado numa máquina, operada por Desmond. “Isso corta o meu coração”, diz ele. “Por ser um lugar público, os mendigos podem dormir na rodoviária. Então convivo com vários”, diz ele. “Mas há muitos deles que estão assim porque não querem nada como o trabalho”, alega. Ele lembra ainda das toneladas de jornais e revistas jogados fora a cada noite pelas bancas do terminal. Como os funcionários são permitidos a guardar o que acharem no lixo, há colegas que fecham containers inteiros e enviam para a África.

Durante o verão, camisetas suadas vão para o lixo. Casacos extras idem. Em dias de pouca chuva, são os guarda-chuva que acham no lixo seu destino final. Tênis que não cabe na mala? Lixo. Bicicleta que não entra no ônibus? Lixo. Pais que desistem de levar o carrinho de bebê, deixam o trambolho ali, no lixo. Desmond já recuperou um novo, de dois andares. Antes dos ataques de 11 de setembro de 2001, quando a rodoviária ainda mantinha guarda-volume, as histórias era outras: malas e mais malas ficavam por lá até estourarem o prazo máximo de três meses. Depois disso, iam para o lixo. Seu colega chegou a recuperar, de uma das malas, um colar de ouro – trocou posteriormente por dois mil dólares. A faxina funciona 24 horas por dia na rodoviária – cada turno conta com 30 profissionais. “Nos dias de chuva e neve, há reforço. O chão não pode ficar molhado. Se alguém escorregar, a rodoviária é processada judicialmente, ” explica. Os funcionários da faxina, conta Desmond, são haitianos, negros americanos, jamaicanos, dominicanos, trinitinos e pouquíssimos brancos. Brasileiros? Nenhum.

“Sou democarata, adoraria se algum democrata ganhasse estas eleições”, comenta. Nas primárias, seu voto é para Obama. Mas se Hillary disputar a rodada final, seu voto é para ela. “Hillary quer acabar com a guerra – e eu odeio derramamento de sangue, isso vai contra as minhas crenças cristãs. Já Obama não está pressionando muito nesta questão”, argumenta. “Hillary também propõe dar cinco mil dólares a cada mulher que se tornar mãe – este dinheiro seria destinado à educação”. No entanto ele diz que ela ainda não se posicionou na questão Israel e Palestina – para ele, Hillary tem que escolher um lado. E também não gostou de vê-la chorando. Diz que líder que é líder não chora. “Por outro lado, Obama é metade negro, metade branco – seria bom ter alguém como ele na Casa Branca, sinalizaria uma mudança”, diz. “Adoraria que ele ganhasse - mas há um estigma de que um homem negro não tem condições ocupar a Casa Branca. Isso não é verdade. Se você tiver os valores certos, e as pessoas te amarem, você é capaz de ganhar. Collin Power foi um exemplo disso. Ao voltar da guerra do Kuwait, ele teria capacidade de ganhar se tivesse concorrido à presidência.”, lembra. “Mas o Obama está fazendo um bom trabalho, ele agrada negros e brancos,” completa Desmond ao deixar o Starbucks para encarar um frio de menos 10 graus centígrados do lado de fora. Mas não antes de recolher o excesso de guardanapos de papel sobre a mesa, e colocá-los no bolso do casaco.

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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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