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02.outubro.2008

A compra da Anheuser-Busch pela InBev provocou dias de tensão, medo e xenofobia explícita na Meca do livre mercado

Tania Menai, de Saint Louis, Missouri

O filme Swing Vote, estrelado por Kevin Costner, chegou às telas de cinema dos Estados Unidos no início de agosto. Trata-se da história de um americano típico da classe média baixa de qualquer cidade pacata do país: ele é loiro, usa cavanhaque, boné e camisa xadrez. É divorciado, desempregado e pai de uma filha. No filme, seu voto para presidente irá desempatar as eleições, por isso ele passa a ser cortejado por ambos os candidatos. Um personagem com esse perfil poderia facilmente atender por nomes ultra populares como Joe Smith ou Bill Johnson. Mas ele vai além: amante de cerveja, o americano se chama Bud. Isso mesmo, o apelido carinhoso pelo qual a marca Budweiser é mais conhecida. Para os americanos, a Bud é uma paixão nacional, dona de metade do vigoroso mercado local. Conseqüentemente, a compra da Anheuser-Busch pela belgo-brasileira InBev, anunciada em julho por US$ 52 bilhões, foi um soco no estômago dos Buds, dos Joes e dos Bills. Apesar de digerir litros de cerveja, eles ainda não engoliram que seu ícone maior tenha sido vendido para belgas da pequena, medieval e bucólica cidade de Leuven.

Sediada em Saint Louis, no Missouri, a Anheuser-Busch (ou Anheuser-Busch-InBev, a denominação que será utilizada pelo novo grupo assim que o negócio estiver sedimentado, o que deverá ocorrer até o fim do ano) emprega mais de 5 mil pessoas – o que significa que uma boa parcela da população de 350 mil habitantes ganha a vida diretamente trabalhando para a cervejaria. Além da dependência econômica, a relação da empresa com a cidade se estende a inúmeras ações de filantropia e ao apoio fornecido a instituições como a Cruz Vermelha e o corpo local de escoteiros. “Em Saint Louis, todos têm uma opinião sobre esta compra”, diz o repórter de negócios Jeremiah McWilliams, que cobriu de perto o acordo das cervejarias para o jornal St Louis-Dispatch. “Nunca recebi tantos e-mails de leitores, nem sei dizer o número preciso. Com certeza, foi o assunto de maior repercussão dos últimos tempos.”

Os leitores de McWilliams queriam saber, indignados, por que a Anheuser estava sucumbindo ao assédio da InBev e o que seria da empresa sob controle alienígena. Houve gente até que procurou o repórter para saber como agir para impedir o negócio e livrar Saint Louis dos temidos cortes de pessoal. “Foram tantas as perguntas que resolvemos promover discussões ao vivo no site do jornal”, afirma. O site SaveAB.com, registrado por um anônimo morador da cidade, recolheu assinaturas contra a aquisição. O sindicato dos transportadores que trabalham para a companhia mobilizou sua portentosa estrutura de comunicação na campanha. O mote dos sindicalistas foi retirado da frase de um analista do mercado financeiro: “A InBev é dirigida por banqueiros de investimentos lenhadores, que cortam custos onde podem.”

A despeito das demonstrações explícitas de xenofobia da população e de políticos que pegaram carona no caso – uma ironia na Meca da economia de mercado, que prega o livre fluxo de investimentos nos quatro cantos do mundo –, a mensagem emitida pela cervejaria americana é de paz. “A Anheuser-Busch faz parte da comunidade de Saint Louis há 156 anos, e isso não vai mudar”, garante David Peacok, o vice-presidente de marketing. “Nossa sede continuará aqui.” As 12 fábricas da companhia espalhadas pelos Estados Unidos também seguirão com vida normal, segundo o executivo. A visão de Peacock é, evidentemente, otimista, na contramão da percepção geral que se verifica na cidade. “Esta fusão significa um grande respeito pelas nossas cervejas, pelo nosso sucesso e pelas tradições americanas que nossa empresa carrega”, afirma, lembrando que 40% da receita global da companhia surgida da aquisição – de US$ 36 bilhões, o que a coloca com certa folga na liderança do mercado global de cerveja – será gerada nos Estados Unidos.

Outro trunfo brandido por Peacock é a presença no conselho de administração do último representante da dinastia Busch a ocupar a presidência da empresa – August A. Busch IV, trineto do fundador August Busch. “Trata-se de um acordo amigável, que apresenta grandes oportunidades para a Budweiser globalmente.” Os supostos laços amizade, porém, não impediram que os controladores da InBev ameaçassem retirar Busch IV à força do cargo. Uma nova e definitiva oferta de compra – US$ 7 bilhões superior à inicial – convenceu o herdeiro do império a assinar a capitulação e evitou uma aquisição hostil.

O que torna a situação ainda mais inusitada para o público interno é que a InBev era uma empresa completamente desconhecida entre os americanos até maio, quando começaram a pipocar os rumores do negócio. A presença de brasileiros no controle e no comando executivo da empresa torna a situação ainda mais confusa para os locais (veja o texto abaixo).

Tour da cevada

Numa segunda-feira de julho, logo após o anúncio da aquisição, um grupo de 40 turistas que percorreu as instalações da empresa – a cervejaria é um ponto turístico importante de Saint Louis, visitado por cerca de 3,6 mil pessoas por dia – não recebeu qualquer tipo de informação sobre a InBev. Quando questionados, os jovens universitários que trabalham como guias simplesmente baixaram a cabeça e falaram que ainda não sentiram qualquer mudança. Melhor mudar de assunto e aproveitar a degustação de cerveja oferecida ao final do tour (gratuito).

A reação quase envergonhada dos guias é reflexo de uma espécie de complexo de inferioridade que se abateu sobre Saint Louis quando os símbolos da pujança econômica da cidade passaram para mãos alheias (ainda que americanas). Primeiro foi a fabricante de aviões McDonell-Douglas, engolida pela Boeing, da distante Seattle, em 1997. Depois foi a vez da financeira AG Edwards, comprada pela também americana Wachovia Securities, em 2007, que pelo menos manteve a sede principal na cidade. Agora, foi-se o controle da Anheuser-Busch.
A bem da verdade, o temor dos cortes de custos existia muito antes dos belgas e dos brasileiros surgirem na história, pois já existiam planos de economizar US$ 1 bilhão até 2010.“Um funcionário da cervejaria veio pedir emprego, temendo por seu futuro”, disse um motorista da rede Sheraton. “Este é o assunto da vez,” afirma o brasileiro Olavo Dietzsch, que trabalha numa grande empresa agrícola na cidade. “Quem tem familiares empregados na Anheuser-Busch está vivendo uma sensação de desconforto.”

Segundo Dietzsch, as pessoas têm certeza de que haverá reformulações na estrutura de custos para ajudar compensar o considerado alto preço pago pela InBev pelo controle da companhia. O que alivia um pouco a situação é a fama de espartanos que os controladores e os executivos da InBev carregam. “Um amigo encontrou o Carlos Brito, presidente da InBev, num vôo de uma companhia de baixo custo”, diz o brasileiro. “Isso causa uma boa impressão, principalmente quando se lembra que os Busch só viajam em avião particular.”
Embora tenha causado consternação popular, a venda da Anheuser-Busch já era esperada pelos analistas mais atentos. “A empresa era a única do mercado que ainda não havia passado por algum processo de consolidação”, diz o gestor de um fundo especializado no mercado cervejeiro que prefere não se identificar. “A Miller e a Molson-Coors já haviam seguindo esse caminho”, afirma, referindo-se às outras grandes cervejarias americanas.

Para esse analista, os temidos cortes de pessoal não deverão ocorrer em grande escala, pois o custo da mão-de-obra é relativamente pouco importante para a indústria de cerveja. O que pesa mesmo para as grandes companhias do setor são os investimentos em marketing, mas aí a Anheuser-Busch e a InBev combinam perfeitamente. Ambas são reconhecidas por seus pesados e, em geral, eficientes esforços publicitários. A Bud é das mais tradicionais e premiadas anunciantes do Super Bowl, a final do campeonato de futebol americano que atrai os comerciais mais badalados do país. A InBev já avisou: quer fazer da Bud uma marca global, uma espécie de Coca-Cola das cervejas. Disso, até o momento, ninguém reclamou em Saint Louis.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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