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Passeio Vintage
01.junho.2011

Tania Menai, de Nova York

“Nasci embaixo da montanha-russa do parque de Coney Island – talvez isso tenha moldado a minha personalidade, que eu considero um pouco nervosa”, disse o personagem de Woody Allen, no filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977). Ser criado embaixo de uma montanha-russa não deve ser das experiências mais tranquilas. Mas quem cresceu em Coney Island, bairro que beira o Atlântico, no Brooklyn, coleciona saudades. A região é sinônimo de parques de diversões, um do lado do outro, daqueles com cara de infância, que preservam a autenticidade e simplicidade das cidades de interior: bate-bate, carrossel ou trem-fantasma. Uma das atrações mais famosas é a roda-gigante do parque Deno’s, construida em 1920, com 144 lugares e 46 metros de altura.

As atrações abrem da primavera ao outono, fazem sucesso no verão, e fecham no inverno. Em abril passado, o tradicional Luna Park ganhou novas atrações, como o Scream Zone, primeira montanha-russa a ser inagurada em Coney Island nos últimos 80 anos. A mais antiga, chamada Cyclone, foi instalada em 1927 e ainda está em operação no parque Astroland, logo ao lado. A novidade foi destaque na mídia local e promete deixar qualquer Woody Allen ainda mais perturbado.

Não espere “o bar da moda” ou “a vitrine mais fashion do ano”. Despida do glamour de Manhattan, localizada a cerca de uma hora ao sul da ilha, Coney Island cheira a história. Tudo é antigo, com ares vintage. Os letreiros são pintados a mão anunciando sorvetes, souvenirs e pretzels. Um dos grandes atrativos é a praia, com uma larga faixa de areia, além de um calçadão de mais de quatro quilômetros de extensão. Por lá passeiam judeus ortodoxos, gente tatuada, casais de gays, famílias russas, mexicanas e até americanas. A praia é limpa, atrai muita gente do Brooklyn, mas há moradores de Manhattan que colocam o biquini e se aventuram no mar.

Coney Island sempre foi democrático, um lugar onde os trabalhadores de classe média baixa levavam – e ainda levam – seus filhos para tomar sorvete no Denny’s ou para comer cachorro-quente no Nathan’s Famous, instituição aberta em 1916 por um imigrante polonês chamado Nathan Handwerker. Por lá passaram Al Capone e Cary Grant. O auge do reconhecimento foi quando o presidente Franklin Roosevelt levou cachorro-quente de presente para o rei e rainha da Inglaterra, em 1939. Nelson Rockefeller, governador de Nova York de 1959 a 1973, jurava que nenhum político local ganharia eleições sem ter sido fotografado comendo um cachorro-quente de lá. Até hoje, as filas são gigantes – a paciência tem de ser maior do que a fome.

Coney Island ganhou seu primeiro resort em 1824, e logo atraiu a elite e as celebridades da época – seu aude durou até a metade do século 20 e cai em decadência logo depois da Segunda Guerra Mundial. Depois da Guerra Civil (1861-1865) a região ganhou novas linhas de trem, levando mais gente e resultando em novos hotéis, lojas, pistas de corrida, teatros e restaurantes. Na virada do século passada, quatro parques de diversão já faziam parte do roteiro do bairro, incluindo o original Luna Park, criado em 1905 (e fechado em 1944). O bairro ficou ainda mais acessível em 1920, quando a linha de metrô chegou até lá – na época o passe valia 5 centavos: este passou a ser o preço da diversão para qualquer um vindo da cidade de Nova York. Nos fins-de-semana de verão, as areias chegavam a receber um milhão de banhistas. Em 1921, a praia recebeu um investimento de 3 milhões de dólares para que fosse construído um calçadão (o Boardwalk) de 25 metros de largura. O projeto ficou pronto em 1923. Mesmo durante e depois da Grande Depressão, a área continuou popular e mais uma reforma ampliou o calçadão. No ano passado, quando Nova York declarou oficialmente o verão mais quente desde 1966, a praia de Coney Island recebeu 12.8 milhões de pessoas durante ao longo da temporada.

De fácil acesso pelas linhas D ,F e Q do metrô, um dos grandes atrativos do bairro é o New York Aquarium, um passeio lindo, não apenas para crianças: lá vivem mamíferos, anfíbios, répteis, aves e peixes, mantidas pelo Wildlife Conservation Society. No entanto, Coney Island é tido hoje como um bairro decadente; as ruas são inóspitas e cinza – um contraste, porém, é um muro coloridíssimo, de 18 metros, pintado pela dupla brasileira de artistas OsGêmeos, em 2005. A decadência de Coney Island, na verdade, de certa forma, tornou-se seu próprio charme. Ninguém tem medo do brega – há, por exemplo, quem desfrute de restaurantes russos, como o Tatiana, que, além de uma decoração extravagante, oferece show de dança e neon – o bairro é o avesso do Meatpacking District ou do SoHo: aqui, todo mundo é o que é, sem compromisso com a moda ou com o que os outros vão dizer. Nestes moldes, o mais famoso evento do bairro – além dos fogos de 4 de Julho - é o Desfile das Sereias, ou o “Mermaid Parade” que acontece todo mês de junho (este ano cai no dia 18 `as 14 horas), desde 1983. Não há limites para a criatividade dos participantes – se vê desde crianças com rabos de peixes até marmanjos barbados fantasiados de figuras mitológicas marítimas – ou mesmo de Ariel.

Foi justamente os ares vintage-decadente que inspiraram artistas como Lou Reed, autor da canção de amor “Coney Island Baby” ou o poeta Lawrence Ferlinghetti, que escreveu , em 1955,“A Coney Island of the Mind.” Neste poema, o autor compara o sofrimento humano de sua época, com uma cena, não revelada, de um quadro do pintor espanhol Francisco Goya, que retrata dor. O bairro tem uma legião de fãs e saudosistas que pipocam no site ConeyIslandHistory.org para fazerem perguntas ao “Mr. Coney”, um especialista de carteirinha, e para ouvir as histórias orais coletadas nas ruas, como a de Ronald Stewart, um pastor negro, que vivehá 50 anos no bairro e hoje é dono de uma livraria e uma barbearia. Ele lembra de sua infância quando sua família vivia num prédio mínimo cheio de famílias de imigrantes hispânicos e judeu; os banheiros eram coletivos, no corredor. Ele lembra de um incêndio que aconteceu na casa e da pressa das pessoas em tirar os pertences de lá. Ele recorda a quantidade de pessoas no prédio, e também do Mardi Gras. Além de todo este resgate cultural, dezenas de filmes foram rodados por lá. The Wiz, com Diana Ross e Michael Jackson, lançado em 1978, é um deles. Para se ter uma idéia, os mais antigos datam de 1897.

Ainda hoje há turistas que passeiam por suas ruas em busca de famosas locações, e patrimônios históricos como o finado Childs Restaurant, cujo prédio terra cota datado de1924 é um dos símbolos do glamour da época, quando os moradores de Manhattan atravessavam a Brooklyn Bridge (finalizada em 1883) rumo `a ilha para desfrutar de uma arquitetura menos urbana, mais praiana, que abusava também da eletricidade em seus parques de diversão. Em 2010, alguns historiadores se juntaram e enviaram uma carta ao governo para que quatro prédios fossem preservados; um deles, o mais antigo, construído em 1880, outro que abrigava um pequeno hotel, de 1903, o terceiro, de 1923, que era ocupado por um banco e o quarto, onde foi gravado uma cena de cinema dos Marx Brothers. Por essas e por outras, o bairro quer mudar seu status: num domingo de abril passado, foi realizada uma inusitada cerimônia em pleno calçadão da praia celebrando seu renascimento. Os donos de negócio locais querem novos empreendimentos, sangue novo, novo astral, mas sem perder o caráter. O governo anunciou um plano de revitalização em 2009, está injetando 150 milhões de dólares no bairro e pretende, com isso, criar 6 mil novos empregos, engajar os pequenos negócios e comercio local, reformar o que precisa e gerar 14 bilhões de dólares nos próximos 30 anos.

Imitando os moldes de Nova Orleans, onde muitos cortejos fúnebres são acompanhados por uma banda de jazz, Coney Island teve seu “enterro” ao som da Jambalaya Brass Band, seguidos por líderes do bairro e donos de estabelecimentos, todos vestido a caráter, com terno preto, cartola e óculos de sol. Alguns deles seguravam um caixão preto sobre o ombro, com ares mórbidos e cabeça baixa. De repente, os músicos mudaram o tom, e de dentro do caixão surgiu uma bela sereia, de salto alto rosa, saia verde e uma faixa dourada dizendo: “Miss Renascimento.” A festa começou ali, naquele domingo de abril – e, pelo visto, não tem data para acabar.

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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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