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Peter Gay
19.maio.1999

"Longa vida, Freud"

O maior biógrafo do pai da psicanálise diz que a mente é misteriosa e o Prozac não resolve todos os dilemas humanos

Tania Menai

"Freud vive. Uma das evidências é o número de obituários escritos sobre ele. Quando uma pessoa morre, basta um único obituário para que descanse eternamente" Luiz Claudio Ribeiro

Caso Sigmund Freud (1856-1939) estivesse vivo, certamente ele gostaria de conversar com o historiador americano Peter Gay, de 75 anos. Em 1988 ele produziu sua primeira biografia do austríaco pai da psicanálise. Desde então, tem estado no centro de quase todas as polêmicas em torno de Freud. Seu livro, traduzido para nove idiomas, foi best-seller nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Comemora-se neste ano um século da publicação do livro básico de Freud, A Interpretação dos Sonhos. "Freud é mais controverso agora do que nunca", escreveu Gay em sua mais recente biografia sobre o famoso pensador, Freud: uma Vida para o Nosso Tempo, lançada no ano passado nos Estados Unidos. Professor emérito da Universidade Yale e diretor do Centro Lewis B. e Dorothy Cullman para Acadêmicos e Escritores, o biógrafo tem o privilégio de ocupar uma sala na imponente Biblioteca Pública de Nova York, que se estende por duas quadras da Quinta Avenida, onde trabalha cercado por mais de 2 milhões de títulos. Foi ali que Gay falou a VEJA.

Veja – A exposição Sigmund Freud: Conflito e Cultura, aberta em Nova York e programada para ir ao Brasil no ano que vem, mostra 180 clipes de filmes e programas de televisão que mencionam a psicanálise – de Alfred Hitchcock aos Flintstones. Sem falar nos jornais e revistas que trataram do assunto. Que impacto Freud teve nas artes e cultura do nosso século?

Gay – A psicanálise teve impacto em quase tudo. As pessoas vêm usando o jargão psicanalítico e até mesmo as idéias muito livremente – às vezes de forma errada e superficial. Ao mesmo tempo, isso sugere que essa influência tem sido bem profunda.

Veja – A psicanálise e Freud emplacam o próximo século ou o Prozac os matou?

Gay – Freud vive. Uma das razões pela qual acho que ele está vivo é o número de obituários escritos sobre ele. Normalmente, quando uma pessoa morre, basta um único obituário para que descanse eternamente. O Prozac e outros medicamentos do tipo podem até atacar os sintomas dos males psíquicos. Isso é bom. Porém, a maior parte desses medicamentos não alcança as causas do problema. Isso a psicanálise faz muito bem. A busca da natureza humana continuará para sempre, com ou sem remédios.

Veja – A psicanálise tem futuro?

Gay – Nosso julgamento é se ela vai durar ou não, se ela vai virar um pé de página na História ou permanecerá um elemento essencial para a compreensão integral dos seres humanos. Meu palpite é que sim, ela é e será útil. Outros podem dizer "bem, é melhor esperar para ver". Mas o caso dos genes do homossexualismo é um bom exemplo. Há muitas pessoas dando ênfase à pesquisa cerebral, entretanto elas também estão comprometidas em investigar o cérebro de forma biológica e fisiológica, considerando que ele é o responsável por tudo o que nós somos. Estou dizendo outra coisa, estou dizendo "espere, ainda há algo mais dentro dessa estrutura biológica". Exatamente o que é essa coisa não sabemos. Ainda é muito, muito vaga a idéia que fazemos da mente.

Veja – As idéias no nosso século foram sustentadas por três pilares: o conceito de evolução de Charles Darwin, o determinismo histórico de Karl Marx e a psicanálise de Freud. Parece que Darwin é o único pilar ainda inatacado dos três. Por quê?

Gay – O comunismo claramente foi à falência e, com ele, naufragou Marx. No geral, ele foi muito simplista. Fica fácil rejeitá-lo integralmente. Por outro lado, existem darwinistas dos quais discordo, não por discordar de Darwin, mas desse tipo de ênfase exclusiva numa parte da experiência humana. No fundo, acho que é cedo para analisarmos se essas heranças serão todas descartadas ou se existirá uma síntese delas. O futuro dirá. O que acho fundamental é termos em mente que essas fabulosas arquiteturas colocadas de pé por esses pensadores não explicam todos os detalhes da vida. Continua sendo decisivo investigar cada cultura, cada figura social de projeção, cada classe social, de modo que um dia, de posse desses dados, possamos ter uma noção clara de como as influências, sejam de Darwin, Freud ou Marx, agem sobre nós.

Veja – Ainda há o que descobrir sobre Freud ou tudo agora se resume à interpretação de sua obra?

Gay – Sim, cerca de 450 cartas que Freud escreveu para sua noiva nunca foram publicadas. Essas cartas nos ajudariam a conhecer o coração e a mente do jovem Freud. Mas, de modo geral, todo o material restante está disponível, não havendo mais muito a fazer, a não ser refletir sobre os trabalhos que conhecemos.

Veja – A psicanálise ainda tem seu lugar como terapia ou Freud será lembrado apenas como um extraordinário escritor em língua alemã?

Gay – A influência de Freud é mais abrangente e profunda do que se poderia esperar de um escritor. Todos nós usamos a linguagem inventada por ele o tempo todo. Suas idéias são nossas idéias em muitos casos. Até aqueles que dizem abominar a psicanálise acabam envolvidos por Freud. Acho que ele mudou definitivamente a maneira como pensamos sobre nós mesmos. Não conheço nenhum pensador sério de área alguma que negue a existência do inconsciente. Essa é uma idéia freudiana que, a meu ver, terá longa vida.

Veja – Mas, com o corre-corre da vida moderna, ainda há quem tenha tempo para o divã?

Gay – Se tem menos gente fazendo análise eu não sei. Sempre haverá quem faça. Isso não tem nada a ver com estar atarefado. As pessoas sempre foram muito ocupadas. Analisar-se é uma prática cara, é difícil identificar o tipo de terapia adequado para cada pessoa. São complicações. Mas o fato de as pessoas estarem ocupadas não as faz desistir da análise. Mesmo a competição química do Prozac, à medida que o tempo passa, pode transformar-se em aliada, em vez de inimiga mortal da psicanálise. Há pessoas hoje, tanto terapeutas de resultados quanto os interessados em psicologia profunda, que estão começando a trabalhar juntas para construir pontes entre a análise e a nova escola da neuropsiquiatria. Temos ainda de ver como isso vai funcionar. Mas há gente boa observando ativamente se essas idéias desenvolvidas em conjunto por ambos os campos de estudo podem ser sintetizadas. Vale a pena esperar.

Veja – As famílias modernas são bem diferentes das que Freud estudou. Como isso afeta a validade das idéias dele hoje?

Gay – As diferenças étnicas ou geográficas e, especialmente, as de classe social não devem ter nenhuma influência específica em suas idéias. O fato de haver hoje uma grande quantidade de divórcios não significa que a família atual não se compara à da época de Freud. Ela é menos estável do que no passado, concordo, mas a idéia de adultério, ou, nesse caso, mesmo a idéia de divórcio e separação legal de casais, está presente nos escritos de Freud. Não vejo isso como um obstáculo aos fundamentos de suas teorias sobre a natureza do animal humano. O que pode haver são diferentes expressões de um mesmo complexo. Freud sabia muito bem que essas diferenças seriam levantadas como um desafio a sua teoria. Mas ele estava seguro de que isso não afetaria os fundamentos da psicanálise.

Veja – Freud saiu-se com a idéia de que certos comportamentos femininos derivavam da "inveja do pênis". Quando ele escreveu isso, o papel da mulher na sociedade era muito restrito. Desde então, elas conquistaram direitos iguais aos dos homens e equipararam-se a eles profissionalmente. O que Freud diria sobre isso?

Gay – Nos seus últimos anos de vida, no fim dos anos 20, começo dos 30, Freud escreveu três artigos sobre a sexualidade feminina. Eles foram bastante criticados tanto pelas feministas quanto pelos adeptos da psicanálise. Os artigos não tiveram sucesso, nem em termos teóricos, nem em termos empíricos. Quase nenhum deles avançou muito sobre o estudo das mulheres. Na verdade, os artigos não foram levados muito a sério. É muito difícil explicar como Freud chegou a escrevê-los. Anteriormente, ele defendia que meninos e meninas tinham um desenvolvimento paralelo. Depois abandonou essa idéia. Enfim, nunca teve clareza sobre a questão da sexualidade feminina. As críticas feitas a Freud pelas feministas nesse particular são corretas. O que me incomoda é que algumas dessas críticas sugerem que o fato de ele ter errado nesse ponto específico leva a crer que todo o resto de sua obra deva ser desprezado.

Veja – Os casais homossexuais são cada vez mais aceitos pela sociedade. Em alguns países eles podem adotar crianças. Como entender nesses casos os complexos de Édipo e Eletra tão fundamentais na obra de Freud?

Gay – Em muitos casos eles continuam valendo. Não sei o que Freud diria se ele morasse em Nova York ou San Francisco e soubesse que casais homossexuais podem adotar filhos. Sei que ele não via o homossexualismo como crime, pecado ou doença, mas não estou certo se ele seria capaz de reconhecer essa confusão dos papéis de pai e mãe que existe nos relacionamentos homossexuais. Conheço dois casais de lésbicas com filhos. Parece-me que em ambos os casos uma representa a mãe e a outra o pai, mas é claro que isso tudo é bem mais complicado do que Freud poderia sonhar. Sinceramente não saberia dizer qual seria a reação dele, afinal.

Veja – Freud não viveu o suficiente para conhecer os avanços da química cerebral, o papel dos neurotransmissores na formação dos pensamentos e das emoções. Se ele tivesse tido essa oportunidade, o senhor acha que ele ficaria fascinado com ela a ponto de deixar a psicanálise de lado e mergulhar num laboratório?

Gay – Tenho certeza de que ele ficaria fascinado. Mas acredito que isso não o faria desistir da psicanálise. Volto ao meu ponto sobre o aliado e o inimigo. Por exemplo, recentemente houve um alvoroço sobre o fato de cientistas terem descoberto o gene da homossexualidade. Todo o universo do qual Freud falava poderia ter desabado. Mas ainda não se conseguiu repetir esses experimentos e as dúvidas quanto à existência desse gene persistem. O problema central é que a homossexualidade é o resultado da interação de causas psicológicas, fisiológicas e biológicas. Freud não tinha objeção a essa visão multidisciplinar. Numa carta para Wilhelm Fliess, seu melhor amigo, no começo da década de 1890, ele escreveu "não devemos esquecer nossa base biológica, sem a qual estaríamos em algum lugar pelos ares". Em seu último livro, Esboço de Psicanálise, inacabado por causa de sua morte, ele escreve sobre a possibilidade de um dia existir uma medicação capaz de mudar a mente das pessoas – não apenas drogá-las, fazê-las se sentir melhor ou bêbadas, mas sim mudar certos equilíbrios mentais. "Se esse tempo chegar", escreveu ele, "não precisaremos mais desse procedimento caro e incerto chamado psicoterapia". Aos 82 anos, ele estava claramente admitindo o poder das drogas que afetam a mente. Ele não quis dizer com isso que suas idéias sobre o inconsciente ou o desenvolvimento do ser humano em fases deveriam ser abandonadas. O que poderia se tornar inútil, segundo ele, era a terapia.

Veja – Os fundamentos de Freud são aplicáveis a todas as culturas?

Gay – Os fundamentos continuam os mesmos, ainda que as expressões mudem. Há um debate muito interessante sobre as sociedades matriarcais das ilhas do Pacífico. O antropólogo Bronislaw Malinovski estudou-as em 1920 e saiu de lá com sentimentos muito confusos em relação a Freud. Por um lado ele estava bastante entusiasmado com a psicanálise. Por outro, ele achava que ela não funcionava. A ambivalência em relação à criação das crianças pelos adultos continuará para sempre. As figuras podem variar, as expressões podem variar, mas certas regras fundamentais serão válidas tanto para a China ou Sudeste Asiático quanto para a Europa.

Veja – Qual a relação entre o biógrafo e o biografado? No seu caso, a sua relação com a figura de Freud.

Gay – Como biógrafo, você tenta descobrir o máximo sobre o assunto e, ao mesmo tempo, manter distância. Por sinal, Freud achou que essa relação era impossível. Ele sustentava que, por estar investindo muito no biografado, você tem ou raiva ou adulação pela pessoa dele. Você a idealiza ou a converte em demônio. Eu simplesmente discordo de Freud nesse aspecto. Parece-me que é possível ser informativo e neutro. É preciso nunca negar evidências que sigam na contramão dos preconceitos do biógrafo. É necessário que se revise a obra constantemente. Eu o fiz. A noção dos 100% de objetividade é uma ilusão ou simplesmente um ideal. Talvez, no meu caso, ser um historiador ajude em termos de ter capacidade de equilibrar os fatos, não distorcer demais.

Veja – O senhor fez análise?

Gay – Sim, participei de treinamento de análise que consiste em palestras, cursos e seminários. Cheguei a fazer um pouco de avaliação de pacientes, mas decidi não praticar, mesmo tendo passado nos exames que permitem a prática de não médicos. Isso durou uns seis anos. E, claro, ser analisado é parte importante do treinamento.

Veja – O seu analista deu-lhe alta?

Gay – Sim. A alta é um processo, e não um simples anúncio. No meu caso, ela veio um ano antes do término das sessões. É uma maneira de o analista expressar que fizemos as descobertas necessárias ou que foram feitos progressos suficientes. Então é hora de pensar na alta. À medida que o fim do processo de análise se aproxima, os sintomas somem ou podem piorar. A relação com o analista é algo que em geral não se quer abandonar. Afinal, ele envolve muita emoção e investimento no analista. Então o paciente tenta ao máximo provar ao analista que deveria continuar a análise – até que chega a hora em que ele concorda que chegou o momento de parar.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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