Daniel Boulud
26.janeiro.2000
"Prazer pelo Prazer"
O grande chef francês de Nova York diz que a boa comida é uma experiência sensorial e não intelectual
Tania Menai, de Nova York
Cena: jantar para sessenta pessoas na casa de um banqueiro. Cada convidado tinha desembolsado 40.000 dólares para dividir a noite com o presidente Bill Clinton e colaborar com o Partido Democrata dos Estados Unidos. A refeição foi preparada sob o olhar rigoroso de um oficial da Marinha, enquanto cozinheiros trançavam entre cães farejadores e seguranças que inspecionavam cada panela. No instante em que o presidente pisasse na casa, ninguém deveria se mover. Nem na cozinha. Ao chegar, Clinton simplesmente ignorou os convidados. Acompanhado de Hillary, foi direto à cozinha, onde passou quinze minutos conversando com o chef. Só então reapareceu na sala de jantar. Que o presidente americano é dado a esse tipo de gesto todo mundo sabe. Mas ele não tomaria essa atitude, no caso de um jantar formal, se o piloto do fogão não fosse o francês Daniel Boulud, 44 anos, dono de três dos melhores restaurantes de Nova York — Daniel, Café Boulud e Payard — e do caríssimo e requisitado serviço de bufê Feast & Fêtes. Antes de lançar-se em vôo próprio, Daniel Boulud assinou por seis anos a cozinha do famoso restaurante nova-iorquino Le Cirque. Nascido nos arredores de Lyon, na França, e morando há vinte anos nos EUA, ele trabalha seis dias por semana, por até dezessete horas diárias. Reinaugurado há pouco mais de um ano, o novo restaurante Daniel sugou 10 milhões de dólares nas obras. Na cozinha de 464 metros quadrados, o barulho da correria dos trinta cozinheiros da casa não tira a calma e o bom humor do chef. Daniel Boulud deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja — O que é comer bem?
Boulud — É se sentir bem, comer algo de que você se lembre. Sou bastante ligado a lembranças gastronômicas. É sempre um momento emocional. Você aprecia o sabor, o vinho, o pão, o serviço — é toda a composição da refeição. Há quem passe a maior parte do tempo dissecando a comida em vez de apreciá-la. Não como com o cérebro, prefiro o prazer.
Veja — Ser um bom chef é...
Boulud — Saber se auto-administrar, além de administrar sua equipe e seus negócios. É necessário ser bom e humilde ao mesmo tempo. Um bom chef deve ter consistência e dedicação e saber lidar com mil coisas simultaneamente. Muitos chefs têm problema de ego. Eles pensam que são mais importantes do que seus clientes.
Veja — O senhor se autodefine um chef franco-americano. Como é isso?
Boulud — É ter morado nos Estados Unidos o suficiente para sentir que não vou voltar para a França, e ter vivido o bastante na França para sentir que nunca me tornarei um americano. Como é preciso fazer uma escolha e não sou nem um nem outro, optei por ser franco-americano. Mas amo a minha herança e acredito nela. Foi ela que me fez quem hoje sou nos Estados Unidos.
Veja — No filme americano Big Night, dois irmãos imigrantes italianos não se entendem na cozinha de seu restaurante, em Nova Jersey. Enquanto um insiste em preservar a autenticidade da cozinha italiana, o outro tenta abrir mão de certas tradições para fisgar a clientela local. O senhor cedeu muito para conquistar o gosto dos americanos?
Boulud — Não se trata do gosto, mas de atitude. Tenho a liberdade de derrubar as barreiras impostas pela cozinha francesa. O menu do restaurante Daniel é francês, mas às vezes me inspiro na cozinha asiática sem fazer disso uma obrigação. Pode ser um molho ou um ou outro ingrediente. Já no Café Boulud salpicamos o cardápio com pratos de diferentes nacionalidades — isso faz parte da cultura americana, uma grande Torre de Babel. Os americanos têm sido expostos a todas as cozinhas do mundo. Muito mais do que os franceses ou até mesmo do que eu em minha juventude. Em Lyon não tínhamos restaurantes turcos, indianos ou chineses.
Veja — Mas os americanos sabem apreciar arte culinária?
Boulud — Nova York não é Estados Unidos. A energia desta cidade é completamente diferente da de qualquer outra. Aqui há gente do mundo todo. Ao mesmo tempo, acredito que os americanos sabem apreciar a boa mesa. Eles têm uma mente mais aberta que os franceses. Meus pais não sabiam o que era vinho bordeaux até o dia em que levei-lhes uma garrafa. Eles estavam satisfeitos com o bourgogne e, na cabeça deles, não precisavam conhecer nenhum outro. Os americanos conhecem vinhos da Austrália, Espanha ou Itália. Nos EUA, a culinária tem muito mais exposição na mídia e do ponto de vista comercial. Com canais como TV Network, quem mora em Oklahoma e nunca veio a Nova York nos conhece. Além disso, vários cinqüentões profissionais de outras áreas fazem estágio aqui no restaurante simplesmente pela paixão de cozinhar. Diferentemente dos franceses e de outras culturas, os americanos não vêem problema nenhum em voltar para a universidade nessa idade para aprender mais. Sem contar com as centenas de aulas de vinho e culinária no país. Há vinte anos essa febre não existia. Os americanos estão, aos poucos, mudando seus valores, deixando de comprar coisas superficiais para gastar um pouco mais numa boa refeição.
Veja — O que o senhor acha do McDonald's?
Boulud — Gostaria que o McDonald's tivesse sido uma invenção dos franceses. Esse tipo de restaurante é uma necessidade. Como o mundo poderia comer todos os dias se não fossem estabelecimentos onde você pode fazer uma refeição por 7 dólares? O que é triste é que muitas pessoas dependam dele. Quem tem quinze minutos para almoçar não tem opção. O McDonald's é o cenário global, mas em qualquer bairro existe uma lanchonete de sanduíches, seja de peru, seja de misto-quente. Cadeias de fast food se proliferaram por causa da falta de tempo e de dinheiro das pessoas. Mas o único problema é que elas seduzem as crianças em troca de presentes. Eles se aproveitam de Pokémon e Super-Homem para conquistá-las. Esta é a má notícia. Seria melhor se eles dessem a elas um morango em vez de um boneco de plástico.
Veja — O senhor conhece a cozinha brasileira?
Boulud — Bastante. Gosto de feijoada e acho bobó de camarão superbe, realmente fantástico. Não é uma comida muito leve, mas os brasileiros não comem esses pratos diariamente. Uma boa caipirinha ainda ajuda a descer.
Veja — O nome do Café Boulud é o mesmo do pequeno café que sua família manteve por mais de 100 anos em Saint-Pierre de Chandieu, perto de Lyon. Como a família influenciou a sua cozinha?
Boulud — Cresci na fazenda e comida era o tópico número 1 da minha família. Passávamos horas à mesa. Minha mãe cozinhava enquanto meu pai e tios cuidavam do campo. Preferia ficar em casa, por isso o meu gosto pela cozinha foi despertado logo cedo. Quando decidi que queria ser chef, meus pais me matricularam numa escola, onde estudei por dois meses. Odiei. Eles ensinavam como ser chef numa cafeteria. Era tudo muito acadêmico, sem expressão nem emoção. Mas aos 14 anos comecei a trabalhar num restaurante depois da escola e foi aí que engrenei. Nessa idade é que se aprende, pois nos colocam para fazer de tudo.
Veja — Num outro filme, o mexicano Como Água para Chocolate, os pratos preparados pela personagem principal fazem as pessoas chorarem ou até mesmo as deixam com vontade de fazer amor. O humor do cozinheiro influencia no resultado final da comida?
Boulud — Claro. O tempo todo. Em casa somos capazes de transmitir nossos sentimentos na comida. No entanto, no restaurante não podemos nos esquecer que cada cliente vem com uma expectativa diferente. Cada prato é uma arte. Quanto mais confortável com a cozinha, mais expressiva é a comida que preparo. Estou aqui para dar prazer às pessoas, mas não posso esquecer que tenho uma empresa. Às vezes é difícil combinar as duas coisas. Não faço as pessoas chorarem. Acho que elas acabam se apaixonando.
Veja — Talento para cozinhar é algo que está no sangue ou para se aprender num curso de culinária?
Boulud — Se você tiver paixão, capacidade de aprender rápido e muita persistência, pode cozinhar com sucesso em casa. Mas para cozinhar comercialmente num restaurante, numa linha de produção, é preciso ser obcecado. Quando jovens, somos todos bons e temos chances iguais. Mas apenas alguns "terminarão a corrida". Outros abandonarão a prova no meio. Muitos colegas largaram a profissão. Hoje eles olham para mim e dizem que sou bem-sucedido, isso e aquilo. Mas eu tenho 30 anos de cozinha, com altos e baixos, e nunca desisti.
Veja — Como o senhor cria os pratos?
Boulud — Nem todo prato é criado com o mesmo propósito. Tampouco todos eles são histórias de sucesso. Quando crio um menu sazonal, utilizo os alimentos da estação. Já os pratos do dia eu crio na hora, vendo quais os legumes que estão bonitos naquele dia. Às vezes me inspiro pelo próprio ingrediente. Outras vezes somos desafiados. Por exemplo, teremos uma semana só de trufas, por isso comprei uma grande quantidade delas para testar diferentes receitas.
Veja — O senhor diz que antes de ser um bom chef é fundamental ser um bom saucier, o cozinheiro que prepara o molho. Por quê?
Boulud — A frescura, o equilíbrio e a textura do molho são essenciais. Seu preparo dá tanto trabalho e custa tão caro quanto o próprio prato. Para fazer o molho da carne, gastamos a mesma quantidade de carne que usamos no prato. Caso contrário, não obtemos o sabor do alimento.
Veja — Quantos ingredientes em média o senhor usa num só prato?
Boulud — De seis a vinte, incluindo temperos e especiarias. O segredo está no equilíbrio de tudo isso. Nossos ingredientes vêm de todas as partes do país e do mundo, e os peixes, de quase todos os mares.
Veja — O senhor é autor dos livros Cozinhando com Daniel Boulud e o recém-lançado Café Boulud Cookbook. Será que os leitores não se intimidam ao tentar seguir as suas receitas?
Boulud — Não. As críticas ao livro têm sido excelentes, com uma boa aceitação do público do país inteiro. Todas as receitas foram testadas várias vezes por nós.
Veja — Na sua cozinha trabalha ge
nte do mundo inteiro, incluindo brasileiros. Como administrar um exército de pessoas?
Boulud — Danço conforme a música. Às vezes o relógio é mais rápido do que eu. Meu dia é recheado de palestras em escolas de culinária ou jantares feitos fora do restaurante. Hoje mesmo o bufê está preparando um jantar da Louis Vuitton para 700 pessoas e eu vou cozinhar outro jantar para Hillary Clinton. Não adianta se estressar, estou cada vez mais zen. Caso alguém erre, tudo bem. Se eu quiser ser o mais perfeccionista do mundo, nunca serei feliz. Eu teria de ficar no pé dos cozinheiros a cada minuto, e isso não seria saudável nem para mim nem para eles. Delego responsabilidades para cada um e os pago muito bem. Esse é o grande segredo para mantê-los felizes.
Veja — O que o restaurante faz com a comida que sobra?
Boulud — Calculamos o bastante para que não haja desperdício. Cozinhamos apenas o que se pede. Não deixamos comidas pré-preparadas. Quando servimos em bufê, damos o que sobra para instituições de caridade. Os pães, que também são preparados aqui, e as saladas vão para os funcionários.
Veja — O senhor se machuca muito na cozinha?
Boulud — Às vezes. Quando eu tinha 15 anos, uma faca caiu com a ponta para baixo diretamente no meu pé. No dia-a-dia corto os dedos, me queimo, mas isso faz parte da profissão.
Veja — O senhor freqüenta outros restaurantes de Nova York?
Boulud — Não o suficiente. Como todos os outros chefs, trabalhamos justamente na hora das refeições. Mas de vez em quando dou umas escapadas. Gosto de comida de todas as nacionalidades, contanto que sejam bem preparadas. Costumo comer sushi num japonês que fica aberto até as 4 da manhã. Lá não conheço ninguém, só há japoneses.
Veja — Numa famosa foto de divulgação, o senhor está segurando um ganso e uma mala. O que isso representa?
Boulud — O ganso simboliza o menino de fazenda, o chef, a minha ligação com a comida. A mala, o jovem imigrante chegando à América com um sonho. Há vários simbolismos nessa foto, por isso ela se tornou tão marcante.
Veja — O senhor cozinha em casa?
Boulud — Sim, mas não todos os dias. Aos domingos à noite, preparo um frango cozido com vegetais, ou qualquer outro prato simples. Janto todas as noites aqui, na mesa do meu escritório. Moro no mesmo prédio do restaurante, por isso minha esposa e minha filha descem todas as noites para jantar comigo. Com uma cozinha deste tamanho, não preciso mais cozinhar em casa. Mas adoro fazê-lo para amigos em ocasiões especiais.
Veja — A sua filha (Alexis, de 11 anos) cozinha?
Boulud — Ela sabe preparar ovos, o que já é um ótimo começo. Deixar o ovo no ponto certo não é uma tarefa fácil.
Veja — Se o senhor pudesse escolher, qual seria o último prato da sua vida?
Boulud — Algo bem simples, como loup de mer, um peixe quase cru, cozido na lenha, com azeite e sal fresco. Este é o prato perfeito. Quando trabalhei em Cannes, em Provence os pratos eram assim, sardinha, vermelho, loup de mer. Contanto que os peixes ainda estejam pulando, esse seria o prato ideal para a minha última ceia.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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