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Umberto Eco
27.dezembro.2000

"O dilúvio da informação"

Para o autor de O Nome da Rosa, a mesma internet que dá acesso ao melhor do conhecimento humano também entope as pessoas com tanto lixo cultural que, no final, tudo pode acabar em "puro silêncio"

Tania Menai, em Bolonha

Umberto Eco é um intelectual que transita com rara habilidade por áreas do pensamento que não se bicam. Ele é um teórico respeitado no campo da semiótica e um literato de mão-cheia. Ganhou o público e as telas de cinema com seu primeiro romance, O Nome da Rosa. O autor italiano, de 68 anos, também viaja com facilidade pelo tempo. Tem fascínio pela Idade Média, o ambiente preferido para as intrigas de suas novelas. Na vida real, porém, está preocupado com o que será da sociedade e da cultura na era da internet. Na Universidade de Bolonha, onde leciona, Eco recebeu Vida Digital para a seguinte entrevista.

Veja – Na sua opinião, que impacto a internet vai ter na cultura?
Eco – Pela primeira vez, a humanidade dispõe de uma enorme quantidade de informação a um baixo custo. No passado essa informação era custosa, implicava comprar livros, explorar bibliotecas. Hoje, do centro da África, se você estiver conectado, poderá ter acesso a textos filosóficos em latim. É uma mudança e tanto.

Veja – E na política, o que vai acontecer?
Eco – O governo chinês está filtrando informação on-line. Programas bloqueiam o acesso ao site B e só permitem acesso ao site A. Mas há truques para chegar ao site B por meio do site A. O governo não pode controlar todos os sites existentes. A internet é como uma enchente, não há como parar a invasão de informação. Em situações críticas, esse excesso de informação é muito positivo. Durante uma conferência em Bolonha, um palestrante disse que se a internet existisse nos anos 40 Auschwitz não teria sido possível, porque todos teriam sido informados do que estava acontecendo. Eles não poderiam dizer, como dizem até hoje, "ah, eu não sabia". A internet nos obriga a saber. Você não pode parar a informação.

Veja – Qual é o aspecto negativo?
Eco – A abundância de informação. Uma boa quantidade de informação é benéfica e o excesso pode ser péssimo, porque não se consegue encará-lo e escolher o que presta. Brinco dizendo que não há diferença entre o jornal stalinista Pravda e o New York Times dominical. O primeiro não possui notícia alguma e o outro tem 600 páginas de informação. Uma semana não é suficiente para ler essas 600 páginas.

Veja – No meio de tanta informação, como encontrar os sites de qualidade?
Eco – Hoje podemos encontrar na internet todos os textos de filósofos medievais. O problema é saber como vou adivinhar que eles estão lá. Esbarrei com esses textos durante uma pesquisa. Mas sou profissionalmente envolvido com esse tipo de estudo. Para uma pessoa mais jovem, a internet pode ser uma floresta: se você decidir virar para a esquerda em vez de ir para a direita, talvez deixe de achar o tesouro que está buscando. Existem muitos sites interessantes, mas há também muito lixo. Fiz uma experiência. Escolhi o tema Holy Grail (em inglês, cálice sagrado, no qual, segundo lendas medievais, Cristo teria bebido durante a Última Ceia). Sei que é um assunto que envolve bastante gente louca, que desperta fantasias inacreditáveis. Na primeira busca encontrei 78 sites. Dois continham boas informações enciclopédicas, dois forneciam dados de nível universitário, cinco misturavam informação enciclopédica com informação sem nenhum controle. O resto era lixo. Como podemos garantir que um jovem iniciante consiga distinguir entre a informação verdadeira e a falsa?

Veja – Boa pergunta...
Eco – Isso é algo que deveria ser ensinado nas escolas do futuro, mas ainda não sabemos em que cadeira. Estou cada vez mais pensando em criar grupos universitários que monitorem sites. Por exemplo, em filosofia. Eles selecionariam os sites interessantes. Então, se um jovem iniciar uma pesquisa sobre um assunto, poderá receber um aconselhamento razoável. Esse poderia ser um serviço de grande sucesso, até em termos econômicos. Hoje você aperta um botão e recebe 10 000 títulos sobre um tema. Só que você não tem tempo nem de ler os 10 000 títulos, sem falar nos livros – isso ilustra como o excesso de informação pode transformar-se em puro silêncio.

Veja – Certa vez, o senhor disse que "quando a internet se tornasse um meio de implementar comunidades reais, por intermédio de comunidades virtuais, teríamos uma grande mudança". O que queria dizer com isso?
Eco – Na primeira fase, a internet implementou a solidão. As pessoas passaram a trabalhar em casa, a se comunicar virtualmente. Como transformar essa solidão em ocasiões sociais? Aqui, em Bolonha, estamos inaugurando em dezembro um enorme espaço público cheio de computadores e livros. A Itália tem população de 58 milhões de habitantes e uma minoria de 5 milhões conectada à internet. Nesses espaços, as pessoas terão acesso à internet, poderão escrever suas teses, receber cursos de treinamento, todo tipo de informação. Tem gente que usa a internet uma vez por semana, então para que comprar um computador? Cinqüenta pessoas usando computadores numa sala podem trocar informação. Assim se utiliza um instrumento de solidão para criar uma pequena comunidade.

Veja – No mundo virtual, a anarquia parece prevalecer. Mas existem ferramentas de controle, como softwares e cookies. Quem vai vencer: a anarquia ou a burocracia?
Eco – Esse é um problema que não tem a ver apenas com a internet. Neste mundo, estamos perdendo a privacidade. Somos filmados quando adquirimos uísque no supermercado, nossas compras, sejam de Bíblias ou de livros pornôs com cartão de crédito, são registradas, assim como nossa hospedagem em hotéis. Com a internet, podemos chegar ao paroxismo. Somos registrados em certos sites, e isso significa que alguém pode ter seguido minhas pesquisas nos últimos seis meses e visto que entrei no site tal buscando informações sobre o filósofo Emmanuel Kant. Isso levará, provavelmente, ao desaparecimento do segredo. Somos cheios de segredos, mas eles não são tão dramáticos assim. Quero comprar um presente de aniversário para minha filha e manter sigilo até lá. É um pequeno segredo, mas segredos estão cada vez mais difíceis de guardar. Vamos viver como na época da confissão pública, quando todos revelavam seus pecados.

Veja – Como driblar essa perseguição?
Eco – Digamos que eu queira ler sobre Emmanuel Kant na internet. Em um site que não tenha nada de proibido, mas que, por razões pessoais, eu não queira ser monitorado. O que fazer? Faço cinqüenta buscas em alguns filósofos, incluindo Aristóteles, Descartes e Kant. No final, ninguém vai saber em qual filósofo estou interessado. É uma forma artificial de proteção, que toma tempo. Estaremos criando formas de proteção para nossos segredos legítimos, ou então deveremos ter uma atitude diferente perante eles. Como dizer "Sim, tenho uma amante. Sim, comprei a revista Playboy. E daí?" Caso contrário, teremos de inventar formas de autoproteção, novos modelos de hipocrisia pública.

Veja – O inglês está se transformando na língua franca da internet?
Eco – O inglês é o esperanto da internet. Não é a primeira vez que um idioma se transforma num veículo do mundo. Antes era o grego, depois foi o latim. Para algumas pessoas, a rede pode ser a oportunidade de descobrir outras línguas. Existem ferramentas, horríveis por sinal, de tradução, mas talvez um americano traduzindo algo do francês e comparando as traduções passe a entender um pouco de francês.

Veja – O senhor acredita que a internet vá mudar o idioma inglês, pela disseminação de seu uso entre pessoas que não o dominam muito bem?
Eco – Sim, mas esse idioma já vinha mudando bem antes da internet. A existência da América mudou o inglês usado em Oxford e, à medida que o idioma circula, ele está em constante mutação. O que aconteceu com o grego clássico quando ele passou a ser falado na região mediterrânea, pelos egípcios e até pelos romanos? Surgiu uma espécie de novo grego elementar chamado coiné. Era polido, em comparação ao grego de Homero. Mas Aristóteles escreveu naquele idioma. Então, mesmo com um idioma universal simplificado, você pode fazer excelentes coisas.

Veja – A internet ainda é um privilégio da elite?
Eco – Hoje é. E, francamente, não acredito que a humanidade toda vá usar a internet. A rede vai acabar criando novas formas de divisão de classes. As classes não serão mais baseadas em dinheiro, mas sim em quem tem acesso à informação. Teremos aqueles que vão acessar, manipular e interagir, aqueles que usarão a rede apenas passivamente e aqueles que serão excluídos, os proletários. Quando a divisão de classes se fazia de acordo com a riqueza, era difícil dizer para milhões de pessoas pobres "vou doar milhões de dólares e vocês enriquecerão". Agora seria mais fácil dar às pessoas analfabetas acesso gratuito à internet.

Veja – Como podemos acelerar a democratização da rede?
Eco – Por meio da educação. Cada criança no mundo deve ter acesso à internet. Se elas não tiverem dinheiro para comprar um computador, pelo menos devem ter espaços públicos onde possam acessar a rede.

Veja – O que o senhor acha do e-book, o livro eletrônico para computador?
Eco – Os e-books podem mudar parcialmente o panorama. A enciclopédia italiana Treccani deve ter uns quinze volumes grandes. Além de custar caro, ocupa um enorme espaço. Você pode colocar tudo isso num disquete. Uma criança pode ir para a escola levando apenas um e-book. Só não acredito que seja prazeroso ler um romance dessa forma.

Veja – O senhor publicaria seus livros dessa forma?
Eco – Ainda não.

Veja – Com que freqüência o senhor usa a internet?
Eco – Uso a internet como uso o carro, quando preciso. Não passo minha vida dirigindo em auto-estradas. Se não tiver de me locomover, não pego o carro. Não passo madrugadas on-line. Tenho coisa melhor para fazer.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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