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Kurt Masur
04.abril.2001

A orquestra é amante

O maestro alemão diz que perder o comando da Filarmônica de Nova York doeu como o fim de um amor clandestino, mas que reger em Paris e Londres vai recompensá-lo

Tania Menai

O alemão Kurt Masur, 73 anos, teria sido um grande pianista não fosse um problema no dedo mindinho de sua mão direita. Logo na infância, foi proibido de tocar o instrumento. Mas sua frustração durou até ser levado pelos pais a seu primeiro concerto. Não tirou os olhos do maestro. Ele descobrira ali a forma de não romper seu caso de amor com a música. E não parou mais. Durante o hiato cultural europeu provocado pela II Guerra, Masur se enfurnava nas bibliotecas para estudar Beethoven. Ele ainda atraiu holofotes ao participar ativamente da reunificação de seu país, em 1989. Dono de títulos de honra nas melhores orquestras do mundo, divide seu tempo entre Manhattan e Leipzig, onde foi regente da tradicional orquestra de Gewandhaus. Há dez anos ele é o celebrado diretor musical da centenária Orquestra Filarmônica de Nova York, a mais antiga dos Estados Unidos. Mas, a contragosto dos músicos, do devoto público nova-iorquino e dele mesmo, no ano que vem Masur se despede de Nova York. Passará a reger a Filarmônica de Londres e a Orquestra Nacional da França, em Paris. Antes, porém, ele vai dirigir a turnê da Filarmônica de Nova York pela América Latina, em junho, com apresentações marcadas para São Paulo e Rio de Janeiro. Casado há 25 anos com uma violinista japonesa, Masur tem boas recordações do Brasil: "Eu a conheci no Rio de Janeiro". O maestro recebeu VEJA para a seguinte entrevista:

Veja – O senhor foi uma criança muito tímida. Hoje conduz orquestras de centenas de músicos perante milhares de pessoas. Como superou a timidez?
Masur – Isso veio com a necessidade. Na época em que tocava piano, eu podia ser tímido. Mas ao saber do médico que eu não tinha chance de ser um pianista – ou organista, que era o meu sonho – tive de pensar numa alternativa. Quando decidi ser maestro, por mais que todos gostassem da idéia, incluindo minha mãe, acho que ninguém acreditava que eu tinha uma personalidade forte e convincente para tal. Então comecei a desenvolver essa parte, aprendendo a falar com cuidado e fluência, a fim de ser compreendido, evitando soltar os "eh, eh, eh" típicos da insegurança. Gradualmente, aprendi a ser mais forte, mais aberto, a alcançar as pessoas e a não ser tímido.

Veja – Como foi o começo dessa nova carreira?
Masur – Ingressei num coro de meninas, e elas gostaram bastante de mim. Percebi, então, que a idéia poderia funcionar. Desde o começo, essa forma de fazer música foi puro contentamento para mim. Nunca senti como um trabalho árduo ou uma obrigação – era simplesmente a minha maneira de viver. Só queria fazer música e encantar outras pessoas. É o que acontece até hoje. Para isso, eu me aprimorei, fazendo coisas que naquela época eram quase impossíveis para mim, até sentir que uma orquestra poderia me aceitar como personalidade e como pessoa. Até hoje evito contatar uma orquestra que não me adore. Sempre procuro fazer com que a orquestra me entenda e que minha regência não seja a de um ditador, mas a de um amigo. E, estando entre amigos, levar uma mensagem que soe humana, amigável e conectada com o público.

Veja – Como o senhor se impõe à orquestra?
Masur – Em primeiro lugar, a orquestra deve sentir que o maestro a escuta. Um maestro não deve controlar os músicos. Se eles sentirem que podem confiar no maestro, então você acaba fazendo parte do processo deles de alcançar a qualidade. Mas, para mim, não há nada mais importante do que ser honesto, mesmo se a honestidade machucar. Se a orquestra tocar mal, é preciso dizer "vocês têm de melhorar". Ser apenas educado não ajuda. As orquestras só aceitam os maestros quando sentem que podem tocar melhor com ele do que sem ele. Às vezes ser honesto é difícil, claro.

Veja – Diz-se que o senhor sorri muito diante dos músicos, ou pelo menos agia assim no começo de sua carreira. O senhor mudou?
Masur – Não, de jeito nenhum. Um amigo chegou a me alertar para o fato de manter um sorriso permanente nos lábios enquanto conduzia a orquestra. Mas isso foi mais intenso no começo. Eu estava muito feliz por estar regendo e era extremamente amigável. Mas a orquestra esperava que eu fosse mais crítico, a fim de aprimorá-la. Continuo feliz e amigável quando os músicos tocam bem, e nem tão amigável em caso contrário. É uma coisa normal, doar e receber impulsos. A Filarmônica de Nova York é uma felicidade para mim.

Veja – O principal papel do maestro é interpretar o que o compositor deixou registrado na pauta musical?
Masur – Claro. Beethoven (1770-1827) era muito conectado aos acontecimentos de seu tempo. Apesar de ser ligado a Napoleão, ele ficou furioso ao saber que o francês iria se tornar imperador. Beethoven não queria um ídolo ou um imperador ditando regras para o povo. Ele esperava pela propagação da idéia básica de igualdade e fraternidade da Revolução Francesa. O compositor não aceitava o conceito de superioridade inata das pessoas. Para ele nem um rei era superior aos demais. Até mesmo Deus, na concepção de Beethoven, era um parceiro, não uma devoção. Sentimos a atividade do espírito de Beethoven em suas sinfonias. O maestro não pode ignorar essa realidade histórica em torno do compositor. Tem de refleti-la em sua interpretação da música. Temos o dever de tentar encontrar o significado dessas composições.

Veja – Maestros como Arturo Toscanini foram totalmente fiéis às composições. Já o austríaco Herbert von Karajan destroçava as partituras originais, enquanto o alemão Wilhelm Furtwängler quase reinventou Franz Schubert ao reger sua música. Qual sua opinião sobre esses diferentes estilos de regência?
Masur – Nunca reinvento. Estudo as peças cuidadosamente, tentando ressaltar as intenções dos compositores. Mas, claro, tenho personalidade, então há uma diferença natural. Mas eu não tenho de fazer algo para torná-la diferente. Não quero corrigir os compositores, e sim compreender a mensagem que eles queriam comunicar ao público. Esse é o nosso dever como maestros. Não podemos fazer mudanças achando que somos melhores. Em determinada época, Schumann era muito corrigido pelos maestros – eles mudavam aqui e ali. Isso é uma pena. Não deveria ser permitido. É um crime.

Veja – Provavelmente o senhor já teve de lidar com músicos de ego inflado. Como proceder para que isso não afete o resultado do trabalho?
Masur – Isso não é difícil para mim, porque já chego sorrindo. Os ególatras são pessoas pobres. Levam-se a sério demais. Isso é uma demonstração de que não acreditam em si mesmos, são inseguros. Tento ajudá-los. Artistas que são realmente bons e se sentem responsáveis pelas interpretações jamais podem ser assim. Veja o exemplo do violoncelista Yo-Yo Ma. Ele é um artista maravilhoso. Assim como o violinista Isaac Stern e o pianista Alfred Brendel. Que homens fantásticos e sérios!

Veja – Com tanta gesticulação no palco, é importante que um maestro pratique esportes?
Masur – Claro. Um maestro não deve ter um corpo rijo. Antes de reger é importante se exercitar. Ao fazer movimentos errados, é comum que as pessoas machuquem os braços e rompam ligamentos dos ombros. Durante a infância, eu praticava muito esportes, mas não era um grande atleta, nem muito forte. No começo de minha carreira aconteceu algo estranho: depois do primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven, eu não conseguia continuar a regência por falta de fôlego e estrutura física. Tive de treinar meu corpo. Hoje disponho de energia suficiente para reger grandes peças. Já fui nadador, esquiador, piloto de avião planador, e pratico voleibol. Ah, jogo bastante pingue-pongue!

Veja – Músicos dizem que os olhos do maestro são tão importantes quanto as mãos. É verdade?
Masur – Sim, claro. As mãos podem comunicar, mas acredito que a respiração, a maneira de ser, o rosto, a expressão podem fazer muito pela orquestra.

Veja – O humor afeta sua regência de alguma forma?
Masur – Não. Concentro-me totalmente na regência. Foco na peça e suas exigências e me desligo do resto.

Veja – Além de não usar batuta, o senhor é famoso por reger sem partitura. Isso é uma habilidade fora do comum?
Masur – Tenho 200 peças de cabeça e sou conectado a todas elas. Isso me dá maior liberdade, além de passar algo mais convincente.

Veja – A música erudita pode ser popularizada?
Masur – Temos de educar as crianças nas escolas. Se não lhes dermos as diretrizes, iremos perder público e empobrecer a música. Elas vão crescer e escutar apenas a "música fácil", sem significado. Essas crianças nunca irão entender uma boa música. Todos os governos e todos os professores têm o dever de ensinar música nas escolas. É uma coisa muito fácil de fazer. Cantando uma música a cada manhã já é possível fazer as crianças felizes e tornar a escola menos sisuda. Muitos professores ainda não sabem que a forma mais fácil de unir os jovens é por meio da música.

Veja – O senhor conhece compositores brasileiros?
Masur – Conheço muito bem Villa-Lobos. Gosto muito de samba e dos sons das músicas brasileiras. Eles sempre me tocam muito porque são expressões de pessoas maravilhosas que, mesmo quando vivem na pobreza, encontram maneiras de ser felizes. Claro que elas são afetadas por problemas como criminalidade, mas são pessoas muito calorosas, humanas e que buscam contato.

Veja – O senhor admira algum compositor erudito contemporâneo?
Masur – O japonês Masaru Sato escreveu uma peça que ninguém jamais compôs – uma música silenciosa. Algo milagroso e quase inexplicável, um som que soa como o silêncio. Isso é muitíssimo interessante. Depois de doze minutos de música, temos a impressão de estar numa sessão budista. É uma experiência muito especial para o público, além de ser bastante intelectual. Acho-o maravilhoso.

Veja – Que tipo de música o senhor escuta em casa?
Masur – Todos os tipos. Principalmente por causa de meu filho, que está terminando a faculdade, tenho ouvido os estilos mais diversos. Por sinal, ele vai ser maestro.

Veja – Em breve, o senhor vai reger a Filarmônica de Londres e deixará a orquestra de Nova York. Essas mudanças são boas?
Masur – Foi uma tolice do conselho da filarmônica. Elas não têm sentimentos. Se o casamento vai bem, para que mudar? É uma tristeza. Somos como uma família. Mudar de orquestra é como mudar de amante. Não de esposa. Eu ficaria em Nova York se o conselho da filarmônica não tivesse tomado decisão contrária. Se alguém tem o poder e o dinheiro, temos de aprender a lidar com isso. Vou sempre voltar como convidado e espero que tenhamos boas experiências juntos novamente. Ser maestro é uma profissão maravilhosa, pois você passa a vida toda se aprimorando. Não tem limites. Ela dura até o fim da vida.

Veja – Que contribuição pessoal o senhor deixou para a Filarmônica de Nova York?
Masur – Um maestro não tenta mudar a característica de uma orquestra. Apenas faz com que ela aprenda um novo estilo. Cada diretor musical que passou pela Filarmônica de Nova York deixou sua marca. Gustav Mahler (1909-1911) conduzia suas próprias sinfonias. Até hoje a orquestra as toca muito bem. Leonard Bernstein (1958-1969) também deixou heranças. Além disso, essa orquestra ainda toca música contemporânea americana com tremenda precisão. Ao chegar, tentei dar-lhe um contorno mais europeu. Ao tocar Brahms, por exemplo, ajudei a fazer com que as composições soassem germânicas, como se tivessem sido tocadas pela Filarmônica de Berlim. Dei o máximo de meu conhecimento e de minha imaginação sobre o som. E eles me acompanharam. Acredito que essa orquestra alcançou tanta flexibilidade que é capaz de tocar Bach com a mesma beleza e correção de uma orquestra alemã. Tenho orgulho de dizer que ela pode satisfazer os desejos de qualquer maestro.

Veja – O senhor será ao mesmo tempo regente da Filarmônica de Londres e da Orquestra Nacional da França. O que os músicos lá podem esperar?
Masur – Estive em Londres, onde regi como convidado no ano passado. O convite veio logo depois. Tenho de admitir que aquela orquestra tocou esplendorosamente sob meu comando. Pretendo elevar ainda mais o nível, aproveitando a vasta cultura que ela já tem. Quanto a Paris, bem, vou dar-lhes um pouco mais de disciplina. Tenho de conseguir que eles me amem. Caso contrário, tocarão catastroficamente.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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