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André Heller
29.agosto.2001

Árias à brasileira

Tania Menai

Da mesma forma que não se encontra com tanta facilidade uma roda de samba em Viena, não é toda hora que esbarra-se com um diretor de ópera carioca caminhando pelo calçadão do Leblon. Mas quem tiver sorte, é capaz de topar com André Heller, de 30 anos. No litoral carioca, onde o sucesso é garantido aos surfistas, ele tem o mérito de remar contra a maré, um esporte mais árduo e, muitas vezes, solitário do que pegar onda.

Sentado no chão da livraria Barnes and Noble, em frente ao Lincoln Center, em Nova York, às onze da noite, André conta que foi o primeiro brasileiro selecionado pelo Merola, um programa para jovens artistas organizado pela Ópera de São Franscisco. “Este é o programa mais tradicional e de maior prestígio no mundo da ópera. Todas as grandes óperas do mundo, como Metroplitan Opera de Nova York e a Opera de Paris baseiam-se em sua estrutura”, orgulha-se. Pela primeira vez, o programa abriu uma vaga para direção – antes, aceitava-se apenas cantores. André, que já fez diversos trabalhos na Califórnia, foi selecionado após uma batelada de entrevistas, apresentação de portfólio e discussões de cenas. “A concorrência é de cerca de 600 pessoas por vaga”, conta ele. O programa, que dura todo o verão americano, traz 28 artistas – 22 cantores, quatro pianistas e um diretor. Todos ganham passagem aérea, hospedagem e providenciam visto – ou seja, tudo o que uma ópera faz por artistas já consagrados profissionalmente. Eles têm aula com os melhores professores dos Estados Unidos e artistas da área, montam três óperas, além de um concerto de gala encenada do War Memorial Opera House, a casa de ópera da cidade. “Temos todas as facilidades, como bibliotecas, e formalidades de uma ópera grande”.

André veio para Nova York a convite do lendário diretor John Copley, de 70 anos, que está montando “Norma” e “O Pirata”. “Trabalhei com ele no Merola na montagem de ‘Cosí Fan Tutte’ e ele me chamou para acompanhar este trabalho em Nova York. Estou participando da parte técnica como luz, figuração no Metropolina Opera”. Depois, André volta para São Francisco para remontar o “Cosí Fan Tutte”, com uma trupe que vai viajar 42 cidades do interior dos Estados Unidos. “São cidades tão pequenas, que algumas contaremos apenas com pianos e não com uma orquestra”, conta. André não acompanhrá o elenco - o Brasil lhe espera para apresentações de Mozart, Verdi e da “Ópera dos Três Vinténs”, em São Paulo.

Artistas com o Merola no currículo entram para o mundo da ópera com o passaporte de ‘jovens estrelas’. “Somos apresentados a empresários, patrocinadores e pessoas capazes de nos incentivarem – ganhamos bastante visibilidade”, diz. Mas André lembra que essa bolsa não é muito, se comparada ao que ele já realizou no Brasil. “No ano passado, fiz algo ainda mais importante para o nosso país: a montagem da série do Palavras Brasileiras, no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio”, lembra. “Musicamos escritos como a Carta de Pedro Vaz de Caminha e o Tratado de Tordesilhas, transformamos as cartas de amor de D. Pedro para a Marquesa de Santos na ópera ‘Domitila’ ( que recebeu um prêmio da Associação dos Críticos de Arte em São Paulo), montamos concertos sobre poesia romântica e moderna, além das carta do AI-5, a carta de renúncia de Getúlio Vargas e a de Jânio Quadros. Claro que é importante valorizar o fato de um brasileiro chegar, pela primeira vez, na Ópera de São Francisco. Mas os brasileiros deveriam celebrar mais as realizações feitas em solo nacional – é difícil ser profeta em sua própria terra”, diz ele.

André ressalta que no Brasil há um paradoxo quando se trata de popularizar a ópera: de um lado, estão os que desconhecem a arte e têm uma grande resistência ao achar que ópera não é algo popular. De outro, estão os fogosos amantes que acham que popularizando levando a ópera para o povão, entrega-se um tesouro reservado a poucos. “Alguns professores de música no Rio de Janeiro ainda acreditam que tudo deve ser feito como em Salzburgo, mesmo sem a tradição e o dinheiro daquela cidade. Isso não vai acontecer – temos de nos adaptar à realidade do Brasil”, diz.

Até os anos 60, o Brasil produziu vários bons cantores. Houve um hiato na década de 70, com o empobrecimento da cultura. “Mas na década de 90, vi um boom de gente boa, muitos da minha geração”, alegra-se. Contudo, ele acredita que falta preparo e um abismo entre os amadores e os profissionais – não há como ser respeitado se não houver o mínimo de preparo, lições básicas como pontualidade e o domínio de outros idiomas. André ainda lembra que nomes como o do italiano Andrea Boccelli e da Sarah Brighton – que considera “de gosto duvidoso” – estão despertando o interesse da ópera em multidões. “Cada vez que a Sarah Brighton canta - mal e porcamente -, ela faz com que as pessoas não achem mais aqueles sons estranhos.” Ele acrescenta que no Brasil, Bia Lessa faz um bom trabalho adaptando a ópera para o mundo moderno. “Ser moderno é bonito, mas nem todos são preparados para isso – não adianta ter o molho, se você não tem o bife”. André sabe que o Brasil não é o país mais excitante do mundo para a ópera. É uma terra para música popular. Contudo, até os anos 50, o Rio de Janeiro foi uma grande cidade da ópera. Em São Paulo ainda acontece muita coisa, devido à forte presença da comunidade italiana.

Dono de privilegiadas cordas vocais, aos 15 anos, André começou a cantar em coro – mais tarde, entrou para a faculdade de ciências sociais, mas logo trocou pela de música. “Apesar de ter feito muita coisa com canto, quando me formei decidi que não me escravizar pela próxima nota aguda”, lembra ele. “O humor dos cantores varia de acordo com a voz, não quis essa dependência para mim”. Aos 24 anos, ele se tornou professor de interpretação para ópera da UFRJ , sofrendo todas as resistências de um jovem lecionando numa instituição ‘milenar’ – nesta época ele já havia devorado diversos livros de ópera, estudado quatro idiomas e tinha muita cara-de-pau. “Sempre tive fascinação por ópera – há coisas que fogem à explicações”. Desde pequeno, ele assistia ao Pernalonga cantarolando de Barbeiro de Sevilha e o Tom e Jerry a la Carmem. Até que um belo dia ele foi ao Teatro Municipal assistir a uma ópera. “ Eu tinha o mesmo problema de todo mundo: não sabia o que era ópera, imaginava que era caríssima e coisa de elite”, diz ele. “Mas descobri que é um espetáculo como outro qualquer...ou melhor, como nenhum outro”, acrescenta. “Não precisamos comprar um ingresso na pláteia logo de cara. À medida que o seu vício vai ficando mais forte, isso pode mudar. Mas, até então, há ingressos baratos na galeria”.


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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