Joseph Stiglitz
29.maio.2002
"Se todos imitarem os EUA, o livre comércio acaba"
O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz diz que a globalização é irreversível, mas vai ter de se reformar para fazer chegar seus benefícios aos países pobres
Tania Menai, de Nova York
O americano Joseph Stiglitz, 59 anos, ganhador do Prêmio Nobel de Economia no ano passado, é autor do recém-lançado Globalization and Its Discontents (Globalização e seus Descontentes), que receberá uma versão brasileira em breve. Stiglitz foi um dos principais assessores econômicos do governo Bill Clinton. Como economista-chefe do Banco Mundial, ele desenvolveu uma visão crítica da atuação nos países em desenvolvimento das grandes instituições financeiras mundiais, como o próprio Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Stiglitz falou a VEJA em sua sala na Universidade Colúmbia, em Nova York:
Veja – Os Estados Unidos foram os grandes promotores da globalização. Eles ainda atuam no mundo com esse objetivo?
Stiglitz – O unilateralismo americano tornou-se inconsistente com a proposta de globalização. Os Estados Unidos ainda não se convenceram do papel nocivo que exercem. Por isso, os demais países devem alertar os americanos de que o poder deles acaba onde começa a soberania dos outros. Como líderes do mundo livre, deveriam estar dando um exemplo de conduta. A verdade é que, se todas as nações estivessem agindo como os Estados Unidos, a situação mundial seria insustentável.
Veja – Depois de décadas de livre comércio, trânsito desimpedido de idéias e pessoas, o mundo se fechou em 1914. Isso pode estar ocorrendo de novo?
Stiglitz – As forças em favor da globalização são muito fortes. Nem toda a ação protecionista americana será suficiente para fazer o processo todo retroceder. Quando trabalhei na administração Clinton, procurei alertar diversos setores para o absurdo da idéia dominante então de que deveríamos ser a favor do livre comércio mas contra mais importações. É preciso sempre administrar internamente o processo de globalização. Os Estados Unidos erram em adotar medidas protecionistas. Nada justifica a admissão de salvaguardas para defender trabalhadores do setor de aço numa economia em que há apenas 6%, ou até menos, de desemprego. Ainda mais quando se sabe que as salvaguardas são praticadas em prejuízo da economia de países onde o desemprego é de 15% ou 20% e seu sistema social não oferece nenhum amparo a quem perde o posto de trabalho. A justificativa moral para os países prejudicados pelas medidas americanas lançarem mão de salvaguardas é muito maior. Mesmo assim, eles não as adotam. É preciso deixar claro que, se esses países seguissem o exemplo americano, simplesmente o comércio global entraria em colapso.
Veja – O senhor escreveu que "a dor sentida pelos países em desenvolvimento no processo de globalização, da forma que ela tem sido conduzida pelo FMI e por outras organizações internacionais, tem sido bem mais forte que o necessário". Como a dor poderia ser menor?
Stiglitz – Vou dar um exemplo que acho muito didático. Durante um bom tempo, o FMI dizia que a Etiópia estava gastando mais do que sua renda permitia. Mesmo informado de que o gasto era produto de ajuda direta internacional, o FMI insistiu em cortes. Os etíopes ficaram espantados e perguntaram o que deveriam fazer com a ajuda recebida da Suécia e da Inglaterra se não podiam gastá-la construindo escolas e hospitais. O FMI respondeu que eles deveriam colocar o dinheiro recebido nas reservas, e não gastá-lo. Certamente não havia razão para a Etiópia fazer o que o FMI exigia. Gosto do exemplo da Etiópia, porque naquele país nem sequer havia inflação. Na verdade, a economia enfrentava deflação. Com certeza, o problema não era de macroeconomia, e a receita do FMI só atrapalharia se fosse adotada.
Veja – Que críticas o senhor faz ao FMI?
Stiglitz – As decisões do FMI são tomadas por um conselho em que os mercados financeiros são fortemente representados. No FMI, apenas um país, os Estados Unidos, tem poder de veto. Nas Nações Unidas, cinco países têm esse poder. Dito isso, não é surpreendente que a instituição tome decisões mais de acordo com os interesses de quem manda e menos com base numa sólida análise intelectual das questões.
Veja – Há uma sensação em certos setores de que a globalização só favoreceu os países ricos. Isso efetivamente ocorreu?
Stiglitz – Não. A China e a Índia eram países pobres e em uma década diminuíram o abismo que as separava do pelotão intermediário das nações em desenvolvimento. O crescimento médio anual da Índia tem sido de 6%, uma taxa espetacular. O problema é que há um punhado de países que têm sido deixados de lado. A promessa de prosperidade global não acabou, mas será preciso adequar muitos processos aos interesses dos países que não se beneficiaram ainda do progresso.
Veja – Que ganho a globalização trouxe em medida igual para todos os países?
Stiglitz – A transparência. Com a globalização, passou a haver um sistema mundial de pressão. Hoje, os Estados Unidos estão envergonhados diante do mundo por causa do escândalo da Enron e da Arthur Andersen. Esse é um aspecto bastante positivo da globalização, pois força as corporações e as instituições a ser mais abertas. Muita gente subestima esse aspecto da globalização, mas ele é fundamental. Efetivamente, a aceitação ampla da democracia e a condenação da opinião pública à corrupção são até agora os grandes serviços prestados pela globalização dos mercados. São justamente essas as forças que compensarão as desvantagens da globalização.
Veja – Os países que hoje sofrem com o protecionismo dos ricos têm alguma chance de reverter o quadro desfavorável? Como?
Stiglitz – Acredito que a posição que o Brasil tem assumido é muito importante. O país está sendo bastante franco e claro quando critica os Estados Unidos e a Europa. Os líderes das nações ricas têm de reconhecer que, se eles querem manter a agenda do livre comércio, precisam estar abertos para a questão da reciprocidade. Eles só vão entender isso se os outros países levantarem a voz. Uma das coisas que tentei fazer quando estava na Casa Branca foi colocar-me no lugar dos outros países. Como será que eu me sentiria se fosse um líder coreano ao saber que teria de fazer a liberalização do mercado de capitais não nos seis anos que estava planejando mas dentro de um ano? Como eu me sentiria se fosse um fazendeiro mexicano competindo com o milho subsidiado dos Estados Unidos? Como será que eu me sentiria se fosse um doente de Aids na África ao saber que não teria acesso a medicamentos por causa da propriedade intelectual? Quem tem poder global efetivo, como os Estados Unidos, tem de pensar nas conseqüências de quem sofre a ação.
Veja – Essa geração do Primeiro Mundo que hoje protesta nas ruas contra a globalização um dia chegará ao poder. É possível prever como ela atuará?
Stiglitz – Os jovens são menos paroquiais que seus pais. Da tela de seu computador eles enxergam o mundo, e não apenas seu círculo próximo. Certamente, os estudantes com quem converso são bem mais sensíveis às injustiças globais. Então há esperança. Pouco mais de quarenta anos atrás, minha geração era insensível ao sofrimento infligido aos negros americanos pela discriminação legal nos Estados do sul do país. De repente isso se tornou inaceitável. O sul era para nós uma outra nação. À medida que as informações começaram a circular nacionalmente pela imprensa e pela televisão, o país ficou chocado com a situação injusta imposta aos negros. A mesma coisa está começando a acontecer num nível global, e a internet tem sido a ferramenta de informação fundamental nesse processo, que interessa tanto aos países subdesenvolvidos quanto aos desenvolvidos.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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