Nicholas F. Brady
09.outubro.2002
"Não existe plano B"
O ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos, que negociou no passado a dívida de 1,3 trilhão de dólares dos emergentes, diz que um plano de salvação hoje seria impossível
Tania Menai, de Nova York
O americano Nicholas F. Brady, 72 anos, é uma lenda viva no mercado financeiro. Como secretário do Tesouro dos Estados Unidos no fim dos anos 80 e começo dos 90, ele convenceu o então presidente George Bush, pai do atual, a fazer um plano de renegociação coletiva da dívida externa dos países em desenvolvimento. O rombo passava um pouco de 1,3 trilhão de dólares. Assim foi montado o Plano Brady, que permitiu aos países endividados trocar seus papéis desacreditados no mercado por outros garantidos pelo Tesouro americano, os chamados Brady Bonds. Nicholas Brady tem vocação para bombeiro, mas ele não enxerga no atual cenário a mesma oportunidade de alongamento das dívidas patrocinado por ele no passado. Antes de fazer seu plano famoso, Brady foi escalado, em 1987, pelo então presidente Ronald Reagan para presidir a força de trabalho federal encarregada de reordenar os negócios com ações em Wall Street, que se recuperava de um crash. Brady, que visita o Brasil freqüentemente, é sócio majoritário da Darby Overseas, empresa fundada em 1994 com o objetivo de investir na América Latina. Ele falou a VEJA em Nova York na semana passada.
Veja – Como os Estados Unidos reagiriam a Lula na Presidência?
Brady – Caso Lula seja eleito presidente, ele terá de lidar com o mercado mundial. Vale nesse caso o que dizia o lutador Muhammad Ali sobre seus adversários no ringue: "Ele pode correr, mas não pode se esconder". Se o desejo de Lula for desacelerar a entrada de investimentos estrangeiros no Brasil, só há uma coisa a fazer. Só uma. Ignorar as regras do mercado. Se a estratégia de Lula for a de renegar as dívidas, vai atrair para o Brasil uma série de impactos negativos. Acredito que uma coisa é discurso de campanha. Outra coisa é lidar com fatos reais quando se está sentado na cadeira de presidente. Caso Lula seja eleito, ele terá de enfrentar essas realidades. A mais evidente delas agora, a meu ver, é que, não importa que sua vitória pessoal seja ampla, ele terá de lidar com o Congresso, um Congresso forte. Portanto, Lula terá de ir com calma. As grandes mudanças não poderão ser feitas unilateralmente. Claro que, como presidente, ele pode dizer o que pensa. Mas, para fazer o grande entendimento nacional, terá de lidar com as realidades do mercado mundial e do próprio Congresso.
Veja – Como o Brasil pode combinar disciplina fiscal com crescimento econômico?
Brady – Esse é o grande problema. Ele será apresentado ao novo presidente nos primeiros dias de seu governo. A retórica de campanha já será coisa do passado, mas o desafio de sua pergunta permanecerá. A melhor estratégia nesse caso é a mais segura. Melhorar a situação fiscal continua sendo a prioridade, e isso terá de ser feito. Caso contrário, a longo prazo, a inflação vai voltar rapidamente, e o crescimento econômico do país será estancado.
Veja – O senhor acha que há uma chance de o Brasil não pagar a dívida externa?
Brady – Mencionar isso como possibilidade, como Lula fez, é uma coisa. Outra bem diferente é lidar com suas conseqüências estando no cargo de presidente. Não o conheço pessoalmente, mas não acredito que, ao assumir, Lula vá logo falando em calote. No fundo, a verdadeira dificuldade do Brasil é a percepção que o mercado tem atualmente do país. Se o novo presidente deixar o mercado nervoso falando em calote, ninguém mais emprestará dinheiro ao Brasil. Aí, sim, o mercado forçosamente vai colocar a pergunta sobre se a dívida brasileira é sustentável ou não. A percepção é importantíssima. Armínio Fraga, presidente do Banco Central, fez um ótimo trabalho ao tentar convencer os principais candidatos a se comprometer formalmente com o pagamento da dívida externa brasileira. Isso é crucial. O calcanhar-de-aquiles da situação financeira do Brasil é a percepção. Em outras palavras, o que as pessoas acreditam que pode vir a acontecer com a economia brasileira. É fácil perceber que, se um número suficientemente grande de pessoas achar que o país vai agir de forma irresponsável, a pressão dos credores estrangeiros aumentará na mesma proporção.
Veja – O que foi aprendido com o calote das dívidas por parte dos países emergentes nos anos 80?
Brady – As condições atuais são muito diferentes. Naquele tempo, os credores da dívida dos países emergentes eram cerca de 400 grandes bancos. Atualmente, a dívida mais importante é a interna, e ela está nas mãos de milhões de investidores institucionais e individuais. A dívida externa também está pulverizada. Investidores são donos de centenas de papéis, ou bonds, diferentes. Ou seja, se naquele tempo o calote já foi uma medida altamente prejudicial aos países que o adotaram, agora é presumível que o dano seja ainda maior. É sempre bom lembrar que os países latinos levaram anos para se livrar do estigma do calote e das turbulências que se seguiram.
Veja – O Plano Brady salvou os países emergentes de uma crise ainda maior. O senhor acredita na reedição de um plano semelhante agora?
Brady – Desculpe-me, mas não posso responder a esse tipo de pergunta. Ser secretário do Tesouro dos Estados Unidos já é uma tarefa difícil o suficiente sem ex-secretários do Tesouro dando opinião sobre o que eles deveriam fazer. Não vou dar receitas ao atual secretário do Tesouro, mas acho que é dever dos Estados Unidos manter o bom funcionamento do capitalismo democrático. Essa é a melhor forma de erradicar a pobreza na América Latina. Portanto, o trabalho que os EUA devem fazer é convencer nossos amigos e vizinhos latinos de que o capitalismo democrático tem de ser preservado.
Veja – O senhor fala em boa vizinhança, mas há uma crescente decepção com as atitudes dos Estados Unidos no que diz respeito às exportações brasileiras.
Brady – Sei que todos têm criticado o presidente George W. Bush por causa das tarifas de aço. A meu ver há um exagero nessas críticas. Quando se leva em conta todas as tarifas, a questão não é tão séria quanto querem fazer parecer. No fundo, temos as barreiras mais baixas do mundo.
Veja – A má distribuição de renda no Brasil é um fator inibidor do investimento estrangeiro no país?
Brady – Sim, o freio nos investimentos tem muito a ver com essa questão. Mas o problema da distribuição de renda pode ser revertido ou atacado por meio do sistema de capitalismo democrático. Isso envolve a criação de uma classe média numerosa e orientada para o consumo, o que leva tempo, mas não existe outro caminho para a prosperidade. O fim da inflação no Brasil foi um passo importante nessa direção. Mas é preciso fazer mais para dar poder econômico à classe média e, gradualmente, no processo envolver as camadas mais pobres da população. Esse é o sistema que, no final das contas, dará confiança aos investidores.
Veja – O senhor concorda com as críticas que se fazem ao Fundo Monetário Internacional (FMI), especialmente as do prêmio Nobel Joseph Stiglitz, segundo quem o Fundo age mais para favorecer os interesses americanos?
Brady – Durante quatro anos, lidei com o FMI e nunca acreditei que o Fundo e o Banco Mundial beneficiassem os interesses dos americanos. Também não entendo o ponto de vista de Stiglitz quando ele diz que os Estados Unidos têm poder de veto nas decisões do FMI. Acho natural que os países maiores sejam também os mais influentes na administração do Fundo.
Veja – Como as economias emergentes podem evitar as volatilidades do mercado financeiro mundial?
Brady – Não acredito que elas possam evitar essas situações. A incrível abertura dos mercados e a rapidez com que a informação circula pelo mundo tornam impossível ficar ao largo dessas mexidas bruscas. A rapidez do fluxo de informações é positiva, exceto por um aspecto: as pessoas reagem com a mesma agilidade. Vivemos num mundo "em tempo real". Quando a minha comissão examinava a quebra da bolsa em 1987, criamos o chamado "circuit breaker", mecanismo automático que interrompe o pregão quando o fluxo dos pedidos de compra ou venda atinge índices claramente anormais. Assim, como num cruzamento ferroviário, tem-se tempo de parar, olhar e escutar. Isso dá a todos a chance de analisar determinada informação. Foi útil, mas não acabou com o "efeito manada", a tendência de o mercado agir de uma só vez e numa única direção. Não imagino um sistema que consiga resolver esse problema sem restringir a liberdade e a disponibilidade de informação. A verdade é que as pessoas estão se acostumando com mercados voláteis, a ponto de isso se transformar num modo de vida.
Veja – Quanto tempo ainda vai demorar para a economia americana voltar a crescer com maior vigor?
Brady – Tempo é uma questão muito complicada. É muito mais difícil prever isso que falar sobre as causas do problema, ou seja, os excessos. Não tenho uma bola de cristal para ver quanto a recuperação vai demorar. Contudo, posso dizer que os exageros ocorridos no mercado de ações dos Estados Unidos foram os maiores que vi em minha vida. A recuperação ainda levará um tempo até que a demanda e a capacidade produtiva cheguem a um equilíbrio. Acredito que até o fim de 2002 o mercado estará ainda baixo ou, na melhor das hipóteses, próximo da estabilidade.
Veja – A desaceleração da economia americana continuará influenciando a América Latina?
Brady – É impossível haver turbulência no mercado americano sem que isso tenha impacto sobre os mercados latinos. Creio que os investimentos nos países latinos serão menores do que vinham sendo. Essas economias vão diminuir seu ritmo, assim como aconteceu com a economia americana.
Veja – Os americanos vão se adaptar bem a esses novos tempos de economia em baixa?
Brady – Os Estados Unidos são bem mais flexíveis que as outras economias do mundo. Nós nos adaptamos melhor que qualquer outra nação. Essa readaptação já está ocorrendo de seis meses para cá, seja no mercado de ações, na economia ou nos salários de executivos. Os conselhos de diretores de empresas serão muito mais cautelosos antes de autorizar salários, desde pagamentos a estrelas de cinema até a executivos de alto escalão. Esses salários já começaram a ser questionados, e vejo menos vontade da parte de diretores em aprová-los. Ainda escutamos pessoas que esperam altos benefícios, mas certamente elas não vão consegui-los. O ponto importante é que o processo de mudança nos EUA é muito dinâmico. Existem dificuldades estruturais em lugares como a Alemanha, por exemplo, onde há enormes contratos trabalhistas, ou na França, que estabelece horas restritas de trabalho. É o que os economistas chamam de "rigidez estrutural". Os Estados Unidos têm muito menos rigidez que os outros países.
Veja – O senhor já se referiu aos impactos não econômicos dos avanços tecnológicos dos anos 90. Quais são eles?
Brady – A revolução tecnológica reduziu drasticamente a habilidade que os políticos do mundo todo tinham de confundir seus eleitores. Eles ainda devem ser capazes de fazer isso em Cuba, onde até hoje não existem muitos computadores conectados à internet. Porém, não se pode mais enganar eleitores na França, na Alemanha e em diversos países do mundo. Inclusive, essa realidade se estende ao Brasil e à América Latina, mesmo que o número de pessoas conectadas à internet no Brasil seja ainda relativamente pequeno. Esse número, de qualquer maneira, já é maior que nos últimos anos.
Veja – O Brasil e a América Latina ainda serão capazes de atrair investimentos estrangeiros diretos nos próximos anos?
Brady – Haverá um declínio. O Brasil, no entanto, sendo o país mais forte da América do Sul, continuará liderando a atração de investimento estrangeiro na região. Minha experiência em lidar com a economia brasileira, quando fui secretário do Tesouro dos Estados Unidos, me fez ver que o Brasil é um país forte. Obviamente, a trajetória brasileira, da mesma forma que a americana, não é uma linha reta. A cada retrocesso, porém, os brasileiros estão se mostrando capazes de se organizar e seguir em frente. Por isso, acredito que a parcela de captação de capital estrangeiro por parte do Brasil continuará sendo a maior.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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