Samuel "Sandy" R. Berger
25.dezembro.2002
"Estamos vulneráveis"
O presidente do Conselho de Segurança de Clinton diz que os EUA estão inseguros, mas um ataque ao Iraque não vai diminuir o risco do terrorismo
Tania Menai, de Nova York
Samuel ("Sandy") R. Berger, 57 anos, foi para o presidente americano Bill Clinton o que Henry Kissinger fora para Richard Nixon mais de vinte anos antes, durante a Guerra do Vietnã. Não apenas por Berger e Kissinger terem ocupado o mesmo cargo, o de presidente do Conselho de Segurança Nacional, mas pela influência que ambos exerceram sobre seus respectivos chefes. Entre 1997 e o ano 2000, Berger montou a estratégia de intervenção americana em Kosovo, comandou a deposição da ditadura militar no Haiti e, a pedido de Clinton, cuidou para que os efeitos da crise financeira na Ásia se espalhassem com menor força destrutiva pelo mundo. Afastado da política, Berger é hoje sócio do ex-embaixador americano no Brasil Anthony Harrington na Stonebridge International, empresa de consultoria estratégica baseada em Washington. Pai de três filhos adultos, viaja semanalmente a Nova York, sua cidade natal, onde falou a VEJA.
Veja – Há certa decepção no Brasil e em toda a América Latina com a receita de desenvolvimento que os americanos venderam aos governos da região nos anos 90. O senhor acha que os líderes americanos estão cientes dessa realidade?
Berger – Durante os anos 80 e 90, muitos governos na América Latina promoveram políticas corretas inspiradas em nós que visavam à promoção do crescimento. Mesmo com a aplicação dessas medidas corretas, a renda per capita não cresceu no continente. Claro que esse fracasso se tornou um desafio para todos nós. Fomos obrigados a repensar e redefinir o que acreditamos seja o caminho para o desenvolvimento. Agora vemos que é preciso adaptar as políticas econômicas que julgamos serem capazes de promover o crescimento a outras que contemplem também as reformas sociais.
Veja – Há três semanas, o presidente eleito Lula se encontrou com o presidente George W. Bush em Washington. O que se pode esperar desse encontro?
Berger – Estou feliz com a vinda de Lula. O presidente eleito do Brasil é uma prova da vitalidade da democracia brasileira. A imagem que temos dele é a de um homem que perdeu diversas eleições, mas mesmo assim manteve sua fé no sistema político democrático. Estou bastante esperançoso. Acho que a transição entre o presidente Fernando Henrique Cardoso e Lula tem sido suave e com mútua cooperação. É estimulante saber que o presidente eleito disse, durante sua campanha, que pretende dar continuidade às políticas que estimulam crescimento e mais oportunidades. A reforma social não é interessante só para o Brasil, mas também para os Estados Unidos. Trata-se do quinto maior país do mundo, da 11ª economia global, que representa metade da América do Sul. Quando eu estava na Casa Branca, já considerávamos que o entendimento entre Brasil e Estados Unidos era uma das conquistas mais importantes para a estabilidade do mundo. Nosso foco agora é na guerra contra o terrorismo, mas ainda assim espero que possamos colaborar para o sucesso do novo presidente e estreitar ainda mais a relação com o Brasil. Por sinal, vocês sabem fazer eleições com muito mais eficiência do que nós. Apuraram seus votos em menos de dez horas. Não somos capazes de fazer o mesmo. Gostaria de mandar para o Brasil as pessoas da Flórida envolvidas com eleições, para que aprendam como se faz.
Veja – Como o senhor aconselharia o presidente eleito Lula a agir em relação às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a guerrilha que desestabiliza o país vizinho do Brasil?
Berger – Não acho apropriado dar conselhos a Lula. As Farc exercem influência destrutiva na Colômbia e, de modo geral, não têm apoio dos colombianos. Por isso, acho que é papel dos Estados Unidos apoiar o presidente da Colômbia em sua tentativa de reconquistar o poder sobre todo o território de seu país.
Veja – Os países da América Latina, incluindo o Brasil, devem se engajar na guerra mundial liderada pelos Estados Unidos contra o terrorismo?
Berger – Sim. Muitos dos países da América Latina têm sido vítimas do terrorismo. Obviamente, existem vários tipos de terrorismo. É perigoso juntá-los no mesmo grupo, mas temos de concordar com o princípio de que ter civis inocentes como alvo não deve ser justificável. Há iniciativas que podemos realizar em conjunto, como o controle dos fundos que apóiam financeiramente o terrorismo e que circulam pelo continente. Podemos compartilhar dados obtidos pelos respectivos serviços nacionais de inteligência.
Veja – O que esperar do novo Departamento de Segurança Interna americano, cujo orçamento é de 38 bilhões de dólares?
Berger – Essa é a maior reorganização do governo americano desde 1947, quando foi criado o Departamento de Defesa. É um passo útil, mas não suficiente. No começo, envolverá mudanças burocráticas gigantescas, na medida em que 170.000 pessoas de 22 agências diferentes vão se juntar sob um comando único. A idéia é que isso resulte numa integração maior e numa série de normas comuns relacionadas à segurança nacional.
Veja – Seria a primeira vez que mais burocracia resultaria em maior eficiência, não?
Berger – Espero que a nova organização diminua a burocracia. Hoje temos dezenas de agências. Elas não trabalham muito afinadas. Então, pelo menos na teoria, elas serão agrupadas e funcionarão com maior coordenação. Isso deverá levar cerca de um ano para fazer diferença na prática. Cercados por dois oceanos imensos e dois países amigos, os Estados Unidos costumavam se sentir invulneráveis. Os ataques de 11 de setembro fizeram o país reconhecer suas fragilidades. Confiávamos bastante em que sempre haveria alarmes e avisos claros de um ataque aos Estados Unidos. Mas, como vimos, quando os inimigos são terroristas esses avisos podem não vir. Por isso, temos de enxergar nossa segurança nacional do ponto de vista da vulnerabilidade, e não apenas baseados em avisos e ameaças.
Veja – Por que os Estados Unidos acham que devem invadir o Iraque?
Berger – Saddam Hussein representa uma ameaça para a região e para o mundo, mas não acredito que a principal ameaça seja relacionada ao terrorismo. Claro que não se pode descartar a idéia de que ele dará armas biológicas ou químicas para a Al Qaeda ou alguma outra organização. É algo possível. Mas não é uma característica de Saddam dar armas para grupos sobre os quais não tem controle e que historicamente têm sido bastante hostis a ele. Ele era uma ameaça antes de 11 de setembro e é uma ameaça depois de 11 de setembro. Por quê? Porque sua ambição ainda é dominar a região do Golfo. Ele tentou nos anos 80, com a guerra contra o Irã, e nos anos 90, ao invadir o Kuwait. Estou particularmente preocupado com as armas nucleares no Iraque porque podem mudar a dinâmica da região de uma forma muito perigosa. Dito isso, não acho que temos necessidade de apressar o ataque, como se está fazendo.
Veja – Quais são os riscos que uma guerra contra Saddam poderia trazer?
Berger – Nos Estados Unidos, discute-se muito sobre a capacidade de Saddam de usar armas químicas e nucleares durante o conflito. Um dos pontos que precisam ser mais discutidos é o risco de uma resposta hostil antiamericana. Esse risco existe e deve ser examinado com muito cuidado. Existe também a possibilidade de que o ataque ao Iraque acirre de tal forma as tensões a ponto de desencadear uma nova guerra entre árabes e israelenses. Todos esses riscos devem fazer parte das considerações do governo antes de ele determinar um ataque. Por isso, acho importante só agirmos com claro e amplo apoio internacional. Uma ação da comunidade internacional contra Saddam levantaria menos resistências. Se a ação militar se tornar necessária, melhor que seja pela intransigência de Saddam. Não pela impaciência dos americanos.
Veja – É possível que muitos americanos estejam apoiando a guerra contra o Iraque apenas por medo de Saddam Hussein e de suas armas?
Berger – Acho que a cobertura intensiva da televisão e da imprensa de questões ligadas à guerra ao terrorismo não é exagerada. É da natureza da mídia gravitar em torno de assuntos excitantes. Sem dúvida, a guerra contra o terror produz interesse. Mas acho que temos de reconhecer que, da maneira como as coisas estão sendo colocadas, parece que deter o terror é a pauta única de nossa política externa – quando não é. Ainda temos interesses globais e relações fortes em nosso próprio continente que não dizem respeito ao combate a terroristas. Não podemos dar a impressão ao mundo de que somos um país com uma única preocupação.
Veja – Quando os americanos voltarão a se sentir seguros?
Berger – Não estou certo se algum dia poderemos voltar a nos sentir "seguros". Podemos, sim, nos sentir "mais seguros". Acredito que continuaremos vulneráveis ainda por um bom tempo, visto que há uma rede de terroristas mirando diretamente os Estados Unidos. A fase militar da luta contra o terror acabou. O que precisa ser feito agora é mais sutil, exige a cooperação de outros países. Parte de nossa segurança depende da maneira como nos relacionaremos com o restante do mundo. Não podemos dividir o mundo entre nós e os bárbaros. Temos de deixar claro que nosso poder não será usado apenas para nos proteger, mas para garantir o bem-estar mundial. Do ponto de vista moral essa é a coisa certa a ser feita; ela faz parte da guerra contra o terrorismo. Essa postura define a visão que o mundo terá dos Estados Unidos.
Veja – O que o senhor acha do temor que muitos americanos têm de ser alvo da espionagem oficial, realmente algo inédito na história dos Estados Unidos?
Berger – Muita gente está apreensiva com a idéia de ter uma operação de espionagem doméstica, que possa tornar-se intrusa e interferir na liberdade dos indivíduos. Penso que temos de buscar um ponto de equilíbrio. É fundamental que haja cruzamento de dados para evitar novos ataques antes que seja tarde demais. O FBI, pelo que se sabe, não tomou conhecimento de importantes movimentações de suspeitos. Caso os agentes tivessem trocado informações com a CIA, talvez o 11 de setembro pudesse ter sido evitado. Em resumo, o FBI "não sabia o que não sabia e não sabia o que sabia". Isso tem de acabar.
Veja – Durante o governo Clinton, vocês imaginaram que um ataque daquela magnitude poderia ser concebido?
Berger – Ao longo dos oito anos de mandato, o presidente Clinton focou crescentemente a atenção no terrorismo. Em 1995, ao discursar nas Nações Unidas, alertou para o desafio global contra o terrorismo. No ano seguinte, no mais importante discurso do país, ele disse que o terrorismo é a ameaça da nossa geração. Em 1998, quando nossas embaixadas na África foram atacadas, pela primeira vez a comunidade de inteligência conseguiu atribuir um ataque à Al Qaeda de Osama bin Laden. Fizemos um enorme esforço para capturá-lo, mas não tivemos, infelizmente, as informações necessárias para isso. As circunstâncias eram difíceis. O Paquistão era um aliado do Talibã. Todos os governos da região também. Obviamente, o 11 de setembro mudou a correlação de forças na região e o mundo passou a encarar a ameaça de forma diferente.
Veja – Que diferença faz Osama bin Laden estar vivo ou morto?
Berger – O destino de Laden precisa estar em nossas mãos. Isso pode levar seis meses ou dois anos. Mas a lição de 11 de setembro tem de ser uma lição de derrota para os terroristas, e não um prêmio à ousadia. Enquanto Osama bin Laden estiver vivo e livre, ele simbolizará o uso do poder destrutivo capaz de confrontar o mundo civilizado. Esse não pode ser o último capítulo. Nos anos 90, durante o governo Clinton, capturamos alguns dos principais terroristas em atividade no mundo. Em certos casos, eram pessoas procuradas havia doze anos. O responsável pelo primeiro ataque ao World Trade Center, em 1993, foi capturado em 1995. Temos de ser persistentes. Seja qual for seu papel operacional, Laden é o símbolo de um dos ataques mais brutais que o mundo já viu. Isso não pode passar sem que ele e seu grupo sofram severas conseqüências.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
---
voltar |