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Irshad Manji
27.novembro.2004
A Reinvenção do Islã
Tania Menai, de Nova York
A canadense Irshad Manji, 36 anos, é muçulmana, feminista, jornalista e homossexual. Âncora do programa Big Ideas (Grandes Idéias), exibido pela TV Ontario, ela entrevista personagens do mundo intelectual. Antes disso, apresentou durante quatro anos um premiado programa sobre a vida gay. Irshad era pequena quando sua família fugiu da Uganda do ditador Idi Amin, em 1972. Ela cresceu em Vancouver, onde, vestindo véu, freqüentava a madraçal, escola islâmica, todos os sábados. Dos ensinamentos, recorda-se de dois: as mulheres são inferiores aos homens e os judeus devem ser odiados. Aos 14 anos, foi expulsa por seu professor, pois "questionava demais". Durante vinte anos, ela estudou o Corão sozinha em busca de respostas. Sua imersão resultou no polêmico livro The Trouble with Islam (Minha Briga com o Islã, no título da edição brasileira que chega às livrarias nesta semana). Por causa do livro, no qual questiona a religião de dentro para fora, ela é constantemente ameaçada de morte. Irshad recebeu VEJA para a seguinte entrevista na casa de amigos (aliás, judeus), em Nova York.
Veja – Qual é, afinal, sua briga com o Islã?
Irshad – É contra a maneira como a religião é praticada atualmente, com base na interpretação literal do Corão. Isso faz com que os muçulmanos vivam sob uma lei marcial, sem liberdade para pensar ou discordar. Trata-se de um problema que surgiu há séculos, muito antes da colonização européia ou da criação de Israel, e está cada vez pior. Nos primórdios da religião, o Islã adotou a tradição do pensamento crítico, chamado ijtihad. O espírito do ijtihad estimulou um clima de criatividade e de curiosidade que permitia à civilização muçulmana liderar o mundo no aspecto da inovação. Na Espanha islâmica, acadêmicos instigavam os estudantes a ler o Corão com olhar crítico, mesmo que isso contrariasse a opinião do clero. Se essa tradição já existiu no Islã, temos apenas de redescobri-la.
Veja – Quando os muçulmanos passaram a interpretar o Corão de forma literal?
Irshad – No fim do século XI, os portões do ijtihad foram fechados em decorrência de disputas internas no império muçulmano. As 135 escolas de pensamento independente que existiam ficaram reduzidas a quatro, todas conservadoras. Isso levou à leitura inflexível do Corão. Os acadêmicos foram proibidos de rejeitar ou contestar as opiniões legais, as chamadas fatwas. O castigo para quem o fizesse era a morte. No milênio seguinte, os acadêmicos islâmicos passaram apenas a imitar uns aos outros, incluindo seus preconceitos. Embora esses problemas sejam antigos, sua gravidade ficou latente apenas nos últimos anos. Com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o mundo tornou-se unipolar, dominado por uma superpotência, os Estados Unidos. Os radicais islâmicos se autoproclamaram os únicos capazes de desafiar os valores de pluralismo, consumismo e materialismo que a cultura americana representa. Espanta que muitos não-muçulmanos concordem com eles.
Veja – Os Estados Unidos demoraram para levar a sério o fundamentalismo islâmico?
Irshad – Os Estados Unidos só se deram conta desse problema no mundo muçulmano depois dos atentados de Nova York e Washington. Um livro como o meu não poderia ter sido publicado antes de 11 de setembro de 2001. Não que os assuntos nele tratados não fossem relevantes, mas porque o Ocidente não estava prestando atenção. Isso é trágico por sugerir que nós, seres humanos, com toda a nossa tecnologia, inteligência e desejo de fazer alguma diferença, ainda somos intelectualmente letárgicos. É preciso passar por uma crise dessas para constatar que precisamos ficar atentos o tempo todo. Caso contrário, o que acontecer em outra parte do mundo se voltará contra nós.
Veja – Qual a reação dos muçulmanos que discordam de suas idéias?
Irshad – É comum me acusarem de ser uma "judia camuflada" ou de "agente do Mossad", o serviço secreto israelense. Também me chamam de "muçulmana ismaili", expressão que se refere a um setor liberal do islamismo composto de pessoas com educação de alto nível, empreendedoras e ligadas à filantropia. Por causa dessas qualidades, esse grupo é chamado de "judeus do mundo muçulmano". É um grande elogio, mas, obviamente, não estão me elogiando. Recebo muitas ameaças de morte por e-mail e, às vezes, pessoalmente. Certa vez, uma amiga que me acompanhava num aeroporto foi abordada por um árabe. Ele disse que ela tinha mais sorte do que eu. Com a mão, imitou o gesto de puxar o gatilho de uma arma em minha direção. E foi embora. Por outro lado, desde o lançamento do livro tenho recebido apoio de muçulmanos do mundo todo, principalmente de jovens e mulheres. Mas é um apoio secreto: eles não podem verbalizar publicamente suas opiniões porque temem represálias. Para chamar atenção para o assunto, resolvi não viajar mais com guarda-costas para fazer palestras, a não ser que a polícia local insista. Se acredito na possibilidade de seguir a ortodoxia da religião islâmica e, ao mesmo tempo, ser tolerante com o mundo moderno, não posso carregar um leão-de-chácara comigo. Seria hipocrisia da minha parte.
Veja – O Canadá é um país seguro e, mesmo assim, a senhora precisa de guarda-costas?
Irshad – Sim, mas uso esporadicamente. Primeiro, porque custa caro. O Estado não paga por ele, nem a editora do livro – sou eu quem pago. Nós, aqueles com coragem de levantar assuntos polêmicos e pregar a moderação, temos de encarar os seguidores da Jihad nos olhos e dizer que nos recusamos a viver com medo. Não vou viver com paranóia, mas também não quero ser uma vítima inocente. Temo apenas a morte prematura, que cortaria uma vida cheia de propósitos.
Veja – Seria possível escrever este livro se a senhora estivesse vivendo num país muçulmano?
Irshad – Mil vezes não. Essa é uma das razões pela qual agradeço a Alá todas as manhãs pela liberdade que tenho nesta parte do mundo. Sou uma refugiada que veio parar num país onde posso ser uma muçulmana engajada e explorar todo o meu potencial. Quantas muçulmanas têm esse privilégio? Quero desafiar todos os muçulmanos que vivem no Ocidente a usufruir essa liberdade preciosa.
Veja – O que esses muçulmanos podem fazer?
Irshad – Eles precisam ter a segurança de que podem ter fé e, ao mesmo tempo, idéias próprias. Por isso, estou criando um instituto para estimular o pensamento islâmico independente. A idéia é formar um centro de liderança para educar jovens muçulmanos sobre a arte de debater, sobre a Era de Ouro do Islã, quando judeus, cristãos e muçulmanos conviviam em harmonia. Quero trazer acadêmicos de outras religiões para conversar com esses jovens. Depois, devolveríamos esses jovens para suas comunidades, para que eles pudessem dar início a um processo de abertura no Islã dentro da realidade em que cada um deles vive. Ninguém é capaz de fazer isso sozinho. Quando um jovem muçulmano me questiona sobre o próximo passo, eu devolvo a pergunta. Digo que cada um é o seu próprio líder.
Veja – Como seria possível melhorar a situação das mulheres no mundo muçulmano?
Irshad – O melhor caminho é a educação. Quando se educa um menino, educa-se apenas aquele menino. Quando se educa uma menina, educa-se a família inteira. Não quero parecer romântica, mas quando as mulheres têm permissão para aprender tornam-se capazes de interpretar as ambigüidades do Corão sobre os direitos delas. Assim, podem dispensar os conselhos dos mulás, que, aliás, nunca mencionam direito algum. A participação feminina é vital para tirar o Islã do atoleiro em que ele se encontra.
Veja – O Corão condena as mulheres à posição submissa ou isso é um tema aberto a interpretações?
Irshad – Diferentemente da Bíblia, o Corão não diz que Adão foi criado antes de Eva. Portanto, não há base para alegar a superioridade masculina. Na verdade, o Corão manda honrar a figura da mãe. O problema é que apenas algumas linhas adiante dá uma guinada com a afirmação de que os homens foram criados superiores às mulheres. Impressionam as interpretações de uma determinada passagem, na qual se lê: "As mulheres são seus campos. Vá a elas e faça o que quiser". Alguns acadêmicos vêem aí uma comparação positiva, visto que os campos precisam ser cultivados. Ou seja, precisam do esperma masculino para se desenvolver em algo vibrante e robusto, e também de amor. Mas isso só diz respeito ao campo. E quanto ao "faça o que quiser"? Não será um modo de estabelecer um poder desproporcional? É curioso que são exatamente as passagens negativas existentes no Corão que influenciam as leis no mundo muçulmano.
Veja – Muitos muçulmanos acham que a senhora não deve ser levada a sério por ser homossexual. Como a senhora lida com essa questão?
Irshad – O Corão é ambíguo, e quem quiser segui-lo à risca terá de escolher a qual passagem dar ênfase. É verdade que alguns trechos corânicos condenam o homossexualismo. Ao mesmo tempo, o livro sagrado diz que tudo o que Alá criou é excelente – e nada do que Ele criou foi em vão. Se devemos acreditar no Corão, como os muçulmanos podem conciliar esses ensinamentos com a condenação ao homossexualismo? Posso estar errada, mas pergunto aos meus críticos: como eles sabem que estão certos? Não estou pedindo que aceitem ou aprovem minha orientação sexual. Foi Deus quem me criou. Apenas Ele irá me aprovar, ou não. Peço, somente, que haja espaço para debater esses assuntos.
Veja – Como o mundo árabe vê os Estados Unidos?
Irshad – É uma relação de amor e ódio. Políticos árabes cometem falcatruas para enriquecer e mandar seus filhos para universidades americanas. São os mesmos que gritam "Abaixo os Estados Unidos". No íntimo, devem acrescentar "mas só depois que meu filho se formar". Em geral, os árabes não consideram os americanos responsáveis por seus problemas. Se há decepção é porque julgam insuficiente a interferência dos Estados Unidos na região. Muitos governos americanos deixaram de apoiar os movimentos pelos direitos humanos no mundo árabe. Reside aí a origem desse ressentimento. Se o presidente George W. Bush fala em democratizar o Iraque, por que não faz o mesmo com relação ao Irã e ao Egito?
Veja – O que a levou a visitar Israel?
Irshad – Para reportar sobre qualquer conflito, é preciso estar lá, ouvir as pessoas. Escutei de vários árabes israelenses, secretamente, que a vida deles é melhor em Israel do que seria em qualquer país árabe. Eles dispõem de um sistema judiciário independente, têm direito de votar e são representados por cinco partidos políticos, o que é muito mais do que em qualquer outra parte do Oriente Médio. Por fim, têm oportunidades de trabalho e de estudo. Sei que Israel ocupa indevidamente territórios palestinos e isso tem de acabar. Existe, contudo, algo pior: a ocupação ideológica dos palestinos, pelos seus líderes. Por que o texto do acordo de Oslo, de 1993, entre Israel e os palestinos nunca foi traduzido para o árabe? Isso permitiria que pessoas comuns o lessem e decidissem por si. Acredito na democracia para os palestinos, mas isso não vai acontecer até que as duas ocupações acabem.
Veja – Por que os palestinos aceitam essa situação?
Irshad – Eles têm medo. Não é desculpa, apenas a realidade. Quando estive em Ramallah, na Cisjordânia, procurei o escritor Raja Shehadeh. Ele escreveu um livro que me impressionou, no qual critica o sistema tribal que marca as relações entre os palestinos. O encontro, na presença de outros ativistas palestinos, foi uma decepção. Shehadeh simplesmente se calou, e ainda mudou o discurso – disse que Israel era o opressor e os palestinos, os oprimidos. Provavelmente, ele percebeu que colocaria sua vida em risco ao dizer o que pensa. E ele é um advogado que criou uma organização de direitos humanos. Imagine o que acontece com os pobres.
Veja – A senhora costuma dizer que o Islã precisa se livrar da herança árabe. Por quê?
Irshad – Os árabes representam apenas 13% dos muçulmanos, mas o peso de seus costumes é enorme no islamismo. É preciso separar o Islã dos conceitos tribais que são tradicionais entre os árabes. O profeta Maomé levou o Islã para o mundo árabe justamente para que ele aprendesse a fazer a paz. A intenção era unificar as tribos árabes, que brigavam entre si. Um psiquiatra na Faixa de Gaza disse-me que, em vez de abafar a parte negativa da cultura árabe, o Islã acabou estimulando-a. Em janeiro, o Hamas tomou uma decisão "progressista": permitiu que mulheres se candidatassem a ataques suicidas. Contudo, só aquelas que desonraram sua família. Ou seja, as que casaram fora de sua fé, que foram estupradas ou que traíram o marido. A morte, segundo o Hamas, as salvaria.
Veja – Seu livro está sendo traduzido para o árabe. Alguma editora se dispôs a publicá-lo?
Irshad – Não, nenhuma. Mas jovens muçulmanos me deram a idéia de publicá-lo na íntegra, em árabe, no meu website. Estará também disponível em urdu, a língua do Paquistão. Assim, muito mais gente terá acesso, com privacidade e sem medo.
Veja – Osama bin Laden representa o Islã?
Irshad – Não, ao contrário. Líderes fundamentalistas como Osama bin Laden não têm a importância religiosa que lhes é atribuída. Eles usam o Islã apenas para alcançar o poder. Seu regime dos sonhos é baseado no nazismo, não tem nada a ver com religião. Muitos muçulmanos estão cansados com o que está acontecendo com sua fé. Se alguém me perguntasse há alguns anos quanto de rancor antiocidental existe entre os muçulmanos, eu teria dito 80%. Hoje, eu diria 50%. Algo já mudou, e para melhor. O apoio que estou recebendo seria impensável no passado. O desafio será transformar essa sede por mudanças em um fenômeno visível. E isso significa dar à próxima geração de muçulmanos poder para transcender esse medo de violência e de marginalização.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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