Eric Pelofsky
09.dezembro.2004
Tania Menai, de Washington e Nova York
Depois do Iraque, uma vida comum
09.12.2004 | Eric Pelofsky é um americano típico. Magro, alto e tranquilo, aos 33 anos, vive em Washington DC, onde exerce a cobiçada função de advogado do Departamento de Estado desde 2000. No ano passado, deixou o conforto do apartamento onde vive sozinho para trabalhar como voluntário, por um ano, no Iraque.
Trabalhava dia e noite na reformulação das leis pós-Saddam. Vida bastante diferente da época em que era um advogado corporativo em Manhattan, logo depois de se formar. Mestre em políticas públicas e diplomado em direito, Eric quer que o seu trabalho tenha impacto em comunidades remotas, mesmo aquelas cujo idioma ele desconhece.
Nascido numa família judaica, cresceu em Kansas City e chegou a ser jornalista, mas achou que a profissão não lhe permitia contribuir para um mundo menos confuso. Em entrevista autorizada pelo Departamento de Estado, ele revela a NoMínimo os bastidores de um dia de trabalho em Bagdá, sua primeira experiência de vida no exterior. Parte desta conversa deu-se em um restaurante de Washington. A outra parte, por telefone, de Nova York.
O que o fez ir para o Iraque?
Pareceu-me uma boa oportunidade de servir ao meu país de uma forma que tivesse um impacto concreto na vida das pessoas. Naquele momento, a transformação do Iraque era o que havia de mais desafiador na área de política internacional. Era o centro do universo. Logo que abriram uma vaga, me apresentei como voluntário, mas foi escolhida uma mulher. Quando ela estava pronta para voltar para casa, me convidaram para substituí-la.
Antes disso, você estava trabalhando na área do Departamento de Estado que cuida dos assuntos legais relacionados com Cuba. Qual a difrença entre as duas funções?
Como um advogado que cuida de assuntos de Cuba, eu tratava de várias questões ligadas ao direito internacional e também ao direito americano. Há várias leis americanas que se aplicam à nossa política internacional em relação à Cuba. Já no Iraque, grande parte dos assuntos se relaciona com as leis de guerra, com as leis humanitárias internacionais. São dois assuntos totalmente distintos.
O que você levou na bagagem?
Levei várias malas - incluindo uma que ganhei, com equipamento militar. Coloquei medicamentos de primeiro-socorro, uma rede de mosquitos (que nunca usei), muitos lenços de papel umedecidos, muitos xampus, sabonetes, lanternas, duas ou três gravatas, alguns ternos, camisas. Ganhei também uma máscara de gás. Vivia de camisas azuis e calças cáquis ou jeans. Terno e gravata apenas para certas reuniões do conselho do governo.
Como se chega até lá?
Voamos em um avião comercial até o Kuwait, e de lá pegamos um vôo militar até Bagdá.
Como foi o primeiro dia no Iraque?
Muito pior do que imaginava. Era julho. Cheguei lá às 5 horas da tarde. Meia-hora depois, estava jantando às escuras no palácio (onde morava Saddam e posteriormente ocupado pela Coalisão). Tivemos 15 minutos de luz, depois a luz acabou. Foi uma perfeita introdução ao Iraque. Mas a sorte foi que, na época em que cheguei, os americanos tinham acabado de instalar ar-condicionado no palácio. Isso foi bastante relevante para minha estada lá. Ocasionalmente, a falta de água também era um problema no palácio.
Como era sua rotina?
No começo, eu estava hospedado no hotel El-Rasheed, onde ficam a maior parte da equipe da Autoridade Provisória da Coalizão e alguns soldados. Acordava muito cedo e ia para o palácio, acompanhado por colegas, trabalhava o dia inteiro e voltava para o hotel entre 10 da noite e meia-noite. Os dias eram bastante longos. Trabalhávamos igualmente aos sábados e domingos. Sexta-feira era o único dia em que podíamos dormir até um pouco mais tarde – a regra é que nenhuma reunião fosse marcada antes do meio-dia. Às vezes, isso não era possível. Pelo menos mil pessoas, de todas as idades, incluindo mulheres, trabalhavam no palácio. Ocasionalmente, nos divertíamos nas noites de quinta-feira. Às vezes, íamos ao bar do Al-Rasheed; outras, assistíamos a filmes. Não num cinema, é claro: usávamos os nossos laptops, colocávamos os DVDs e projetávamos o filme na parede do escritório, no palácio, com o mesmo equipamento usado para apresentações em Power Point.
Você morou no hotel por todo este tempo?
Não. O hotel foi atacado por mísseis duas vezes. Na primeira vez, eu estava lá. Mas a maior parte das pessoas escapou sem ferimentos. Na segunda vez, eu estava fora do Iraque, uma pessoa morreu e várias ficaram feridas. O hotel ficou inativo. Mudei- me para um trailer que eu dividia com o meu chefe. Fiquei lá de outubro a julho.
E como era?
Pequeno.
Como vocês lavavam as roupas?
Podíamos lavá-las nós mesmos, usando as máquinas de lavar, ou então dar para as lavadeiras. Tinha um trailer para isso. Aliás, tinha trailer para tudo.
Tinha alguma forma de vida comum dentro do seu trailer?
Uma televisão. No começo, havia apenas três canais, um deles era o Fashion Channel, sem som, e o outro o History Channel. O resto era em árabe. Depois, consegui consertar o televisor e passamos a ter 20 canais. Tínhamos CNN, BBC e Al-Jazeera.
E estes canais de notícia reportavam o que você estava vendo ou mostravam o que você não estava vendo?
As duas coisas. Muitas coisas positivas que eu via não eram mostradas na TV. Mas o que era mostrado na TV estava de fato acontecendo – embora não fosse contado na íntegra. A verdade é que a situação estava ruim, de fato. Mas era tão ruim quanto a mídia estava mostrando? Provavelmente, não. As coisas não eram perfeitas. Mas estávamos trabalhando diariamente para que tudo melhorasse.
O Iraque que vemos na TV são casas estraçalhadas, falta de luz, corpos no chão. É isso mesmo?
Há pouco, aconteceu o fim do Ramadã e as pessoas celebraram com festas na rua. As crianças vão para a escola, as pessoas continuam tocando suas vidas, lutam a cada dia para alimentar suas famílias, para educar seus filhos e para traçar um futuro para o Iraque. E isso não dá uma boa matéria de televisão. Bagdá não está destruída completamente, como parece ao assistirmos às imagens na TV. Passamos de carro em frente a prédios com grandes buracos, mas as bombas são precisas. É impressionante a habilidade para bombardear um único prédio, sem destruir os demais.
Em que medida você sentiu que havia realmente uma guerra acontecendo ao seu redor?
Eu escutava. Em alguns dias, quando ouvíamos foguetes e morteiros, sabíamos que a guerra estava bem próxima. Em outros dias, não escutávamos nada, eram dias normais. Trabalhávamos lado a lado com iraquianos, fazíamos o melhor possível. E, quando isso acontecia, eu ficava muito satisfeito. Uma rebelião era algo remoto.
Então, em torno do palácio, vivia-se numa área segura?
Havia um grande esforço em se fazer um lugar seguro para iraquianos, americanos, britânicos, poloneses, e outros, se juntarem e falar sobre uma forma de fazer o Iraque voltar a andar de novo - democraticamente e economicamente. Fizeram de tudo para nos manter em segurança e para que pudéssemos desenhar um novo futuro para o Iraque.
A sua equipe era formada apenas por advogados. Vocês criaram novas leis para o Iraque?
Criamos algumas, mas estávamos utilizando algumas leis iraquianas. Muitas leis do Iraque não eram tão ruins assim. Algumas eram ruins, outras pertenciam à estrutura militar. Mas muitas eram razoáveis – apenas foram ignoradas por décadas. Então, estávamos vasculhando toda a legislação em busca de caminhos para fazer com que a economia e o sistema judiciário continuassem a andar. E fizemos tudo isso com advogados iraquianos. No fim da jornada, já tínhamos cinco deles trabalhando conosco.
Quão bem preparados são estes advogados iraquianos?
Um deles era um professor que tinha estado em Glasgow, na Escócia. Ele era muito engraçado, pois às vezes tentava falar com sotaque escocês... Mas, em geral, trabalhamos com advogados diplomados no Iraque. Minha impressão era de que eles eram muito bons. E o mais importante: eram as pessoas mais corajosas que alguém pode conhecer.
Por que?
Porque eles vinham todas as manhãs trabalhar com a gente – e enfrentavam todos aqueles que eram contra isso. E mais: entravam na fila de checagem para entrar na “zona verde” (a área de Bagdá em que estão a sede da Autoridade Provisória da Coalizão e do comando militar iraquiano); isso significa que eles colocavam a vida em risco. São muito corajosos.
Não é qualquer um que pode entrar na “zona verde”?
Nem tanto. Tem gente que mora nesta área. E muitos passam por lá para ir ao centro de convenções, que tem vários lugares de reuniões.
Onde você estava quando encontraram Saddam?
Eu tinha vindo aos Estados Unidos doze horas antes, num breve folga de fim-de-ano. Estava dormindo havia quatro ou cinco horas, quando me ligaram do Iraque às seis da manhã. Eles não me disseram imediatamente que tinham prendido Saddam. Mas queriam uma opinião, do ponto de vista lega,l e estavam em busca do meu chefe. Acho que me contaram sobre Saddam meia-hora depois.
E qual foi a sua reação?
Fiquei furioso por não estar no Iraque. Sabia que aquele seria um dia bastante animado por lá.
Quando você passou esta semaninha de Ano Novo aqui, sua família expressou alguma vontade de que você não retornasse ao Iraque ou estava tranqüila?
Disseram para eu não voltar para lá. Mas eu sabia que eu tinha de voltar porque ainda tinha muito a ser feito.
O que você aprendeu depois de passar um ano negociando com árabes?
Aprendi a escutar com bastante cuidado e a ser paciente. Eles têm um ponto de vista de longo prazo, mais do que nós. Eles são negociadores bastante pacientes. Além disso, são muito inteligentes. Fazem bem o dever de casa.
O que os iraquianos estão sentindo em relação à presença dos americanos lá?
As opiniões divergem bastante. Alguns estavam agradecidos por estarmos lá, não queriam que viéssemos embora no dia 30 de junho. Outros queriam que a gente fosse embora no dia seguinte. Foi muito bom ver um debate saudável e democrático no Iraque.
Ainda há muitos soldados e civis morrendo diariamente. Como você vê o futuro do Iraque?
Acho que o governo hoje no poder do Iraque e os EUA têm de trabalhar bastante para assegurar que essas eleições sejam o mais inclusivas possível. E que nenhum grupo do Iraque fique fora deste processo. Isso depende de muita persuasão, pois, por muito tempo, o país foi liderado por uma minoria. E agora essa minoria tem de ser persuadida de que o Iraque será democrático o suficiente para que ela seja respeitada e não sofra retaliações em relação ao passado.
O quão difícil é ser democrático em uma região como o Oriente Médio?
Eles estão aprendendo a discutir bastante! Não sei se será o suficiente. Acho que o fato de outros países não serem tão democráticos irá interferir na habilidade deles de exercer a democracia. Se o Canadá não fosse um país democrático, isso afetaria a nossa democracia? Acho que, além dos Estados Unidos, será muito importante que países como a Inglaterra, Itália, Polônia tentem ajudar as reformas democráticas no Iraque. Isso é muito importante. Se as pessoas são, de fato, compromissadas com uma reforma dessas, elas têm de ajudar.
O que os seus amigos pensavam de você ter ido para o Iraque?
“Já foi tarde!”, pensavam.
E como era a comida (fornecida pela Haliburton, empresa onde trabalhava o vice-presidente Dick Cheney)?
Posso dizer apenas que era ok. Tínhamos um refeitório, com pessoas servindo atrás do balcão. O menu incluía salada, lasanha, muito frango, carne, porco – tínhamos três opções por refeição, além da salada. Fazíamos quatro refeições. A última era servida entre 10 da noite e duas da manhã.
Você chegou a conhecer Bagdá?
Sim, mas não da maneira que eu faria se estivesse em uma cidade onde pudesse andar livremente. Tem partes de Bagdá de que gosto bastante. Por exemplo, eles têm um bazar ao ar livre de livros, a maior parte em árabe; é impressionante.
Agora que vocês vieram embora, o que fizeram com o palácio?
Virou uma anexo da embaixada americana.
Depois de uma experiência como esta, como é voltar para Washington DC, uma cidade calma e sem violência?
Estou feliz de dormir na minha cama, sentar no meu sofá, comer meu sushi. Mas sinto falta do trabalho e dos iraquianos que trabalhavam comigo. Mantenho contato com eles. Um, inclusive, está indo muito bem. Ele é advogado de um oficial iraquiano de alto escalão. Estou muito orgulhoso dele, porque sei que ele é capaz.
O que esta experiência lhe ensinou?
Uma apreciação mais profunda do que um soldado americano faz diariamente por seu país. Isso me impressionou muito - seu sacrifício, a vontade de se sacrificar e sua dedicação.
Se você fosse se apresentar hoje como voluntário, que lugar escolheria?
Escolheria Mônaco, Nice, Saint-Tropez... talvez, a Córsega. Falando sério, existem pessoas que saem de um conflito para mergulhar em outro. E eu não quero ser assim. Quando se vivem diversos conflitos, perde-se a noção de normalidade. Acho que é importante voltar para algum lugar onde se possa viver um dia comum, uma vida comum. Assim, sabemos de que forma o mundo deve ser.
[ copyright © 2004 by Tania Menai ]
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