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Françoise Girard
10.janeiro.2005

"Sexo não é luxo"

A canadense Françoise Girard é um pesadelo para qualquer conservador de carteirinha. Advogada de direitos humanos, radicada há uma década em Manhattan, ela trabalha há seis anos na Coalizão Internacional de Saúde da Mulher. A entidade promove discussões sobre temas como a sexualidade feminina, o aborto, o planejamento familiar e a saúde sexual na adolescência.

Françoise liderou durante oito meses uma pesquisa que resultou em um documento de deixar puritanos – e republicanos – de cabelo em pé. Intitulado “Implicações Globais das Políticas Domésticas e Internacionais dos Estados Unidos sobre a Sexualidade”, o documento, lançado em junho em Porto Rico, acaba de ser traduzido para o português e terá seu lançamento brasileiro nesta segunda-feira, dia 10, às 19h, no Plaza Hotel, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

Françoise, que estará presente, passará uma semana no Rio reunindo-se com profissionais da área. Casada, mas sem filhos, ela considera a sexualidade feminina e a reprodução humana as questões mais difíceis de se abordar no cenário da política internacional.

“Este assunto é sempre marginalizado ou tratado como luxo”, disse ela à repórter do NoMínimo em sua casa, em Nova York. “Tratar com cuidado da maneira como vivemos, como nos reproduzimos, como planejamos nossas famílias ou como evitamos a violência doméstica deveria ser prioritário em qualquer agenda política. Isso não é luxo.”

O que a levou a elaborar este documento?

No campo de saúde reprodutiva não tem havido muita compreensão sobre o que acontece no pano de fundo que move as questões que enfrentamos diariamente. Por exemplo, muita gente tem trabalhado para assegurar que o aborto seja seguro e legal. E muitas delas acreditam que, quanto menos tocarmos no assunto, menos incomodamos à direita, à ala conservadora que abomina o aborto. Outras pessoas dizem que o assunto em voga é o casamento homossexual. E repetem que, quanto mais se falar nisso, pior. Eu discordo. São questões que precisam ser debatidas. A direita americana e a Igreja Católica, internacionalmente, estão interessadas em todos os aspectos da sexualidade. Eles querem controlar e policiar esta área e fazer com que as pessoas voltem a um caminho que, provavelmente nunca existiu, onde as únicas relações sexuais que existiram aconteciam dentro de casamentos heterossexuais. Eles lutam contra tudo que não seja isso.

Por que há tanta oposição ao aborto?
Os conservadores associam o aborto a um sexo mais livre, ao sexo que pode ter ocorrido fora do casamento e resultado em crianças indesejadas. Por outro lado, eles também não gostam de planejamento familiar. Abominam as formas anticoncepcionais modernas, simplesmente porque isso abre uma possibilidade de sexo por prazer e não para reprodução. Obviamente, os conservadores também são contra o casamento entre homossexuais. Também se opõem a qualquer tipo de pesquisa sobre sexualidade, especialmente sobre diversidade sexual. Ainda querem erradicar a prostituição, por ser algo que ameaça o casamento.

Como os governos são capazes de entrar em questões que fazem parte da vida íntima dos cidadãos?
Ao examinar estes assuntos no cenário da política americana, vimos que o mesmo grupo de pessoas e organizações está por trás destas iniciativas. A batalha dos conservadores contra o aborto nos Estados Unidos está ligada a todas as outras batalhas – a da contracepção, dos serviços de saúde sexual para adolescentes e do casamento entre homossexuais. O assunto sexualidade é muito central nos projetos dos conservadores de direita. Não é um assunto aqui, outro ali.

Isso piorou depois do governo Bush?

Não é só o Bush. Isso acontece há séculos, mas certamente nos Estados Unidos estamos vendo uma movimentação crescente sobre o assunto desde a Era Reagan, quando foram postas em prática regras como abstinência até o casamento. Desde que Bush tomou poder temos um presidente bastante próximo à direita, além de duas alas do Congresso controladas pelos republicanos. Já não há muitos obstáculos no caminho desses republicanos para que eles implementem essa agenda. E uma vez que eles se apossem ainda mais do Senado e passem a eleger mais juízes republicanos, a situação irá piorar.

A senhora sabe se o seu documento chegou às mãos do governo americano?
Chegou. Durante o lançamento, em Porto Rico, havia uma delegação americana. Eles pegaram uma cópia.


No Brasil, a Secretaria Especial da Mulher acaba de propor uma revisão da lei que proíbe o aborto. A senhora acha que o governo Bush tem o poder de influenciar o governo brasileiro para recuar na legislação?

Eu não diria que o governo Bush é tão poderoso a ponto de influenciar tudo o que acontece em todo o mundo. Mas é claro que as forças da direita, que estão trabalhando lado a lado com o governo Bush e seus aliados no Congresso, também estão presentes em outros países. A hierarquia da Igreja Católica, por exemplo, bastante próxima à Casa Branca, também é muito ativa no Brasil. Alguns dos grupos de direita mais ativos nos Estados Unidos, como o Comitê do Direito à Vida, um grupo antiaborto, tem se tornado cada vez mais presente nos últimos dez anos na América Latina. Antes tínhamos apenas a Igreja Católica lidando com esses temas, agora temos grupos protestantes evangélicos. São questões que eles chamam de “assuntos familiares”. Eles ainda se auto-intitulam “pró-familia”. Muitos desses grupos são financiados pela América do Norte. Então, certamente, há uma conexão.

No Rio de Janeiro, as escolas públicas adotaram o ensino do criacionismo, e orientam os alunos a negar o evolucionismo e crer que a mulher foi feita da costela do Adão. Há casos similares nos Estados Unidos?

Não pesquisei o criacionismo a fundo, mas esta iniciativa indica claramente a influência dos protestantes evangélicos que acreditam que a Bíblia contém uma verdade literal. É o mesmo grupo que diz que a homossexualidade é pecado, porque em certo versículo do Velho Testamento está escrito que um homem não deve deitar-se com outro homem. Eles se esquecem que este mesmo trecho bíblico menciona que se deve manter escravos e coisas do gênero.

O Brasil tem tido bastante sucesso na área de medicamentos genéricos contra HIV e AIDS. A senhora acredita que o governo Bush pode vir a ser uma ameaça a este mercado?

Certamente. Nos capítulos do nosso estudo sobre HIV e AIDS, levanta-se esse assunto. Há dois anos, o governo Bush aprovou uma lei no Congresso que trata dessa questão nos países em desenvolvimento. Chama-se “Plano de Emergência da Presidência para HIV e AIDS”. A intenção é gastar 15 bilhões de dólares ao longo de cinco anos em países da América Latina e da África. O Brasil não está incluído. Mas é possível notar qual é a filosofia deste projeto: por um lado, teríamos de forçar países em desenvolvimento a pregar apenas a abstinência sexual. Por outro, os remédios usados seriam fabricados apenas pela indústria farmacêutica de marca. Essa filosofia moralista combina um aspecto pró-corporativo, que desestimula os países a comprarem genéricos, à promoção da abstinência sexual até o casamento. Os Estados Unidos foram o país que lutou contra o Brasil na questão de genéricos para HIV até três anos atrás. Finalmente, pararam – mas a filosofia pró-corporações ainda está muito viva. Por sinal, a pessoa apontada pelo governo Bush para liderar a área de esforços contra HIV e AIDS pelo mundo foi o CEO de um laboratório, um dos grandes da indústria farmacêutica. Esse assunto merecerá atenção e, certamente, acho que o Brasil não deve confiar no governo americano em questões como essa.

O Canadá acaba de aprovar o casamento gay. Como canadense, a senhora acha que o seu país é independente o suficiente dos Estados Unidos para fazer o que quiser? Será que países que são financeiramente dependentes poderiam ter a mesma “liberdade”?

Acho que o Canadá é bastante independente dos Estados Unidos. Temos até orgulho disso. A atmosfera social no Canadá é bastante diferente. Por exemplo, a questão do aborto nem chega a ser polêmica. O aborto não é regulado, mas também não é criminalizado. O Canadá é livre para fazer o que quiser e responder às demandas sociais de seu povo sem nenhuma influência. Mas isso também não é fácil. O país esteve sobre grande pressão para juntar-se à coalizão que invadiu o Iraque e, no final, recusou-se. Foi uma decisão árdua porque o Canadá faz parte da OTAN, é um aliado dos Estados Unidos. Existem muitos laços culturais entre os dois países. Mas os Estados Unidos têm usado o apoio de nações não tão independentes para pôr em prática a agenda da sexualidade. Acho que ainda podemos esperar mais novidades nessa área.


Ultimamente os países ocidentais têm prestado bastante atenção à questão da mulher na religião islâmica. No entanto, as demais religiões também têm regras que deixam a mulher em posição inferior. Até que ponto a religião está nos mantendo no passado?

Há um componente patriarcal em quase todas as religiões. Não conheço todas elas, mas a maioria das principais têm essa característica. Por exemplo, a ala conservadora americana quer ver as mulheres como mães e esposas, dependentes financeiramente no marido. O governo Bush está promovendo essa idéia. A intenção é tirar as mulheres do welfare (seguro-desemprego). Essa é uma forma de o governo dizer a estas mulheres: “Casem e deixem seus maridos sustentarem vocês e seus filhos. Assim nos livramos dessa responsabilidade”. Esta visão vem do catolicismo, dos protestantes evangélicos e de outras religiões. Nos Estados Unidos, muito se tem falado sobre as mulheres islâmicas, mas não temos prestado a devida atenção ao fundamentalismo dentro de nosso próprio país. Também temos olhado com pouca atenção para o que está por trás de todas essas campanhas. Isso é um fundamentalismo que vai prejudicar a todos nós – mulheres, homens e crianças. Temos de parar de analisar um pouco o lado exótico das outras culturas e nos centrar também na nossa.

Há bons exemplos pelo mundo?

Temos boas histórias na Turquia. Recentemente, o parlamento turco adotou a reforma de um código permitindo a vários grupos feministas mudar o cenário de leis que dizem respeito à família e à violência doméstica no país. Esses grupos ficaram um pouco desencorajados quando radicais islâmicos tomaram o poder há cerca de três anos, mas decidiram continuar a luta, até porque a Turquia está prestes a juntar-se ao Mercado Comum Europeu. Lá houve muito sucesso.

Isso inclui a polêmica questão do estupro?

Sim. O estupro, antes tratado como um ataque à honra da família e do marido em vez de uma violência física à mulher, já é considerado um crime contra a mulher. Outra lei positiva é a visão do homem e da mulher ocupando a mesma posição na família, com os mesmos direitos e deveres. Na prática, no tribunal, na custódia dos filhos, isso fará uma grande diferença. Essas mudanças foram feitas com muito suor por muçulmanas turcas e indicam que, mesmo em países conservadores, há espaço para mudanças. O primeiro passo é compreender o que está acontecendo. E isso não está acontencendo hoje nos Estados Unidos.



[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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