Todas as entrevistas

Outras entrevistas de: Claudia

Eve Ensler
03.maio.2005

Dos monólogos da vagina ao desespero com a barriga, uma viagem pelo corpo da mulher


Tania Menai, de Nova York

Seu corpo tem 52 anos, mas sua mente abriga uma vitalidade de 20. Seu sorriso cativa, mas ela ainda implica com a barriga escondida dentro da roupa de inverno. Autora da peça Monólogos da Vagina, uma fenômeno que começou na Broadway e foi traduzido para 35 idiomas, incluindo uma versão brasileira, Eve Ensler não para quieta. Em novembro do ano passado, subiu mais uma vez à ribalta para apresentar The Good Body, peça em que discute o quanto a mulher – de qualquer cultura – vive insatisfeita com sua anatomia. Viajando durante seis anos por mais de 40 países, Eve descobriu cremes para clarear a pele na África e na Ásia, mães retirando costelas de suas filhas de oito anos, para que elas não se preocupem em fazer dietas, adolescentes vomitando sem limites para perder peso, coreanas operando os olhos para tirar os traços de sua cultura. A peça ressalta ainda o tempo que se gasta esticando, diminuindo, costurando, tingindo e concertando algo que, na verdade, nunca esteve quebrado: o corpo feminino. The Good Body, que também virou livro, traz histórias de mulheres de várias idades e nacionalidades, incluindo Isabella Rossellini, musa demitida da Lancôme ao completar 40 anos, Tifanny, uma modelo brasileira casada com um cirurgião plástico e que já não tem mais o que esticar, inchertar ou aspirar, e Lea, uma africana de 74 anos que ama seu corpo. Rara alma, entre as milhares de candidatas à Barbie.

Ativista, mãe de um filho adotivo e avó de uma neta de 8 anos, Eve revela em primeira mão que acaba de se separar, depois de um casamento de 15 anos. Está cada vez mais envolvida com V-Day, organização que criou há sete anos para ajudar a pôr fim à violência contra a mulher. Ela sabe do que fala: durante a infância, foi vítima de estupro pelo próprio pai. Rodando o globo - de Kabul a Bósnia, passando por Dehli – ela escuta histórias e dá vozes a mulheres que mal podem gritar. Até agora, Eve já escreveu nove peças – a décima está sendo escrita este ano, em Paris. Eve conversou com CLAUDIA em uma gélida manhã de segunda-feira, em Manhattan.

Elétrica e sorridente, vestida de preto, com anéis e colar de prata, Eve entrou numa deli da região de teatros e serviu-se de salada, torradas e dois ovos fritos. Na saída, enquanto comprava um cappuccino, ainda pescou um exemplar do The New York Times quando viu uma reportagem de capa sobre uma temporada de suicídios nas prisões de Nova York. Contou que ama o Brasil, e orgulha-se bastante da produção brasileira de Monólogos da Vagina e do longo tempo que está em cartaz. E acrescenta: “O Brasil é uma cultura viva, as pessoas são lindíssimas por natureza, não entendo o porquê desta obsessão em melhorar o corpo.”

Você começa a peça Good Body dizendo que, mesmo com tanto terrorismo e violencia doméstica no mundo, você se preocupa com a sua barriguinha. Ela ainda lhe persegue?

Qual a mulher que não tem problema com a prórpria barriga? Mas acho que estou lidando muito melhor com o meu corpo hoje do que em qualquer outra época. Levou anos, mas depois de fazer Os Monólogos da Vagina durante oito anos e The Good Body por um ano, finalmente aceitei o meu corpo e aceitá-lo do jeito que ele é – e parar de concertá-lo na tentativa de fazê-lo melhor. Passo muito menos tempo pensando nisso.

O que você faz para mantê-lo saudável?

Faço yoga e procuro manter uma dieta saudável. Só.

Quais os achados mais incríveis em The Good Body?

Falei com centenas de mulheres, mas não em formato de entrevista, foram apenas conversas. O que achei mais curioso é o tempo que as mulheres gastam tingindo, fazendo dieta, concertando seus corpos a fim de torná-los bons. E bom se beneficia em qualquer cultura – significa magro, puro, limpo, loira, magrinho. E, normalmente significa, não ocupar muito espaço, não ser muito intensa, nem muito poderosa.

Então isso está diretamente ligado a posição que a mulher ocupa na sociedade...

Certamente. E, normalmente quando as mulheres estão concertando, mudando ou mutilando seus corpos, elas estão tentando ser boas, de alguma forma, ou tentando se comportar, ou ser menos, ou se encaixar. Em vez de simplesmente amar nossos corpos, com as grandes, redondas e deliciosa maneira com que eles foram feitos. O mundo ainda tem medo das mulheres, e ainda tem medo da nossa complexidade, ambiguidade, misterio.

Então os homens não estão prontos para aceitar este espaço das mulheres?

Nem mesmo as mulheres não estão prontas para isso. Se as mulheres se aceitarem, então o mundo inteiro iria mudar. Mas ainda deixamos os outros determinarem o que somos.

No país da cirurgia plástica e do Botox, que a mais chocou em sua visita ao Brasil?

A facilidade como as pessoas fazem lipoaspiração. E a quantidade de pessoas que o fazem. E o quanto as pessoas nem precisam, como são magras – eu não conseguia ver qualquer gordura em seus corpos, e elas estavam com lipoaspiração marcardas. Este me parece um procedimento bastante violento e, ainda assim, as pessoas estão correndo para fazê-lo. O Brasil é um país de contradições. As pessoas são as mais abertas, as mais vivas, as mais tangíveis, e ao mesmo tempo estão fazendo cirurgias plásticas como ninguém, e têm uma obsessão por ser perfeito, algo que chega ao extremo.

Na China, você conheceu mulheres que chegam a quebrar os ossos para inchertar próteses que as tornam mais altas. Em Bervely Hills, visitou clínicas que diminuem a abertura da vagina. Algum outro país lhe chocou mais?

Os Estados Unidos são bastante amendrontador. O que fazemos aqui, como cirurgias para encolher a vagina. De alguma forma, os EUA estão exportando essa idéia pelo mundo.

Por outro lado, a quantidade de obesos neste país também chega ao exagero...

As pessoas são muito sozinhas – ou elas comem demais, ou chegam a anorexia.

Falando em anorexia, será que as modelos fazem um disserviço a todas nós, que pesamos mais de 50 quilos?

Não. Acho que essa exigência vêm de todos os cantos, incluindo da realidade judaica-cristã. A igreja dita que devemos ser boas e puras. Vem da sociedade patriarcal que nos diz para não sermos tão grandes, tão intensas, ou tão poderosas. E vem do consumismo do capitalista, que a todo tempo convence às pessoas que algo está errado com elas, que elas não estão magras o suficiente, loiras o suficiente, ou brilhante o suficiente – e que elas tem de consumir produtos para que fiquem melhores. É uma sacada de gênio das corporaçãoes; se estivéssemos bem conosco, não compraríamos nada disso.

Como as suas viagens e pesquisas afetaram a sua vida?

Tenho viajado tanto, que, honestamente, não me sinto ligada especificamente a nenhum país. Não me interesso mais em nações, acho que elas são ilusórias. Interesso-me por humanidade, e por pessoas. E isso faz com que onde quer que eu esteja, sinto-me em casa. Não vejo o mundo como uma nação sobre a outra – isso soa ridículo para mim. Acho o nacionalismo uma idéia primitiva. Isso não que dizer que eu não goste de alguns lugares, ou que eu não ame Nova York, a cidade onde nasci. Mas quando estou no Sri Lanka, sinto-me conectada ao Sri Lanka, o mesmo acontece quando estou na Itália ou no Brasil. Adoro a idéia de ser cidadã do mundo. Minha indentidade está na minha vagina e no meu coração, em vez de estar em uma cidade ou país.

E o quanto estas experiências influenciaram a sua vida amorosa e o seu casamento?

No momento estou solteira e livre. Esta nova situação está sendo muito interessante. Por sinal, minha separação foi tão recente, que você é a primeira pessoa da imprensa para quem estou contando. Sabe, tive uma relação linda durante 15 anos, ele foi uma pessoa muito marcante. Mas estou em um ponto da minha vida onde preciso estar sozinha. Preciso do meu espaço, da minha realidade, dos meus contatos, das minhas definições sobre mim mesma. Acho que chegamos a este ponto, como mulheres, não sei. Para mim, aconteceu – quero estar comigo. É uma sensação amedrontadora e animadora ao mesmo tempo, mas, sobretudo necessária. Foi uma decisão correta, e estou começando a encontrar os meus pés dentro desta nova situação.


Como você vê o homem e a mulher lidando com a relação de amor e sexo?

Estas relações dependendem do estágio da sua vida. Em algumas fases da minha vida estive faminta por intimidade e relacionamento; em outras, estava apenas a fim de ficar sozinha e ter boas relações sexuais. Não acredito que temos os mesmos desejos durante a vida, tampouco acho que todo mundo tenha os mesmos desejos. Todos nós fomos feitos diferentes. Por exemplo, nunca quis ter bebês. Muitas mulheres no mundo querem ter bebês - e muitas outras não. Temos de escutar nossas vozes interiores para saber o que realmente queremos, porque, normalmente, somos empurradas para as situações. Ouvimos frases como “é isso que você tem de fazer” em vez de “isso é o que você precisa ou quer fazer”. Você não pode ser uma boa mãe se você não quiser ser mãe.

E como é a relação com seu filho, que é ator?

Maravilhosa. É a melhor relação que tenho. Tenho também uma neta de oito anos – não há nada que brilhe para mim tanto quanto eles!

Depois de percorrer o mundo falando com mulheres, o que você acha que deve ser feito urgentemente em relação a elas?

Dar um fim à violência contra mulheres. Não há nada mais urgente neste planeta hoje do que isso. O assunto está no centro de toda questão que aflinge o mundo hoje. Veja a questão de ser mãe – como você pode ser uma boa mãe se você apanhou ou foi estuprada? Como você pode ter um bom salário se a sua auto-estima erodiu? Como você pode manter um emprego, o foco, como você pode pensar ou educar-se? A maioria das mulheres que entrevistei nas prisões ou apanharam ou foram estupradas. O mesmo acontece com as que são mendigas ou as que são pobres. São mulheres cuja auto-estima lhes foram arrancada desde pequenas, ou então em algum ponto de suas vidas. Isso afeta a vida delas tremendamente. Elas contraem AIDS, pois não se protegem sexualmente. Acabam em relacionamentos onde elas não se honram. Enfim, isso tem um impacto em todas as questões de suas vidas.

Como você superou a violência na sua vida?

Levou-me muitos anos, muito trabalho, falei muito, escrevi mais ainda. Falar com com outras mulheres para ajudá-las é o melhor que fiz.

Como é lidar com o envelhecimento?

Estou passando pela menopausa - no começo é duro porque é diferente. Não dava para acreditar que meu corpo estava passando por isso. Mas hoje estou amando a experiência. Sinto o que está acontecendo com o meu corpo. Há muito mais confiança, segurança, sinto que não preciso mais pedir desculpas por nada, sinto-me na minha vida, no meu corpo. Então, para mim, envelhecer está sendo uma experiência gloriosa. Estou amando. Sempre digo que envelhecer seria perfeito se não fosse o fim da vida. Mas o processo de envelhecimento em si é fantástico.

O quanto as suas experiências na infância lhe impulsionaram a ser uma ativista?

Ter sido uma sobrevivente de violência contra a mulher, tive que aprender a escapar desse mundo, então acabamos ensinando tudo o que aprendemos e acabamos pesquisando assuntos alheios às nossas próprias experiências.

As mulheres lhe abordam para contar suas histórias?

Sim, aonde quer que eu vá. Por exemplo, acabei de fazer um tour pelos Estados Unidos e em todos os lugares elas se aproximam para contar suas histórias. Elas tem pouquíssimas oportunidades de contar suas histórias. Então quando elas encontram uma, elas se animam. E elas sabem que sou extremamente interessadas em ouví-las.

Como é o seu dia-a-dia?

Amo a minha vida. Levanto-me todos os dias e tenho as aventuras mais selvagens aventuras. A agenda é constantemente lotada, posso estar em qualquer cidade do mundo a qualquer hora. Penso sobre mulheres, escrevo, encontro com “guerreiras da vagina” extraordinárias do mundo todo, que estão lutando para acabar com a violência contra mulheres e estão fazendo um ótimo trabalho para trasnformar a energia deste planeta. É fantástico. Sou orgulhosa de ser uma ativista.

Como se faz para abordar estes assuntos em regiões que ainda parecem viver na pré-história?

Em primeiro lugar, é incorreto achar que os EUA tem apenas pensamentos progressistas. Muitas partes do país ainda são bastante conservadoras e sem capacidade de ouvir sobre o que estamos falando. Depois de fazer um tour por escolas católicas vi que há o mesmo grau de resistência lá do que no Paquistão – não há diferença alguma. Mas a notícia boa é que quem promove o V-Day nestes países são as mulheres locais. Não sou eu quem leva a idéia para lá. São elas quem nos procuram. Não imponho nada a elas. Cada mulher sabe trazer a idéia para sua própria cultura e país, da mesma maneira que os atores, produtores e diretos brasileiros fizeram quando levaram a peça Monólogos da Vagina para o Rio de Janeiro e São Paulo. Eu não saberia fazer isso, porque eu não saberia adaptar a peça para a cultura brasileira. Eles sabem.

Como a educação sexual deve ser ensinada nas escolas, para que haja mais respeito e menos tabu?

Todos os ensinamentos tem de começar enquanto jovens – mulheres, desde cedo, tem que aprender como funcionam seus corpos, quais seus direitos sobre eles, o que lhes dá prazer. Se ensinarmos meninos e meninas desde pequenos, que eles são bonitos, que devem honrar seus corpos, que merecem respeito, e que eles passem a ver seus corpos como uma pequenas e belas árvores, então todos vão crescer tendo uma idéia diferente sobre como o nosso corpo deve ser. Mas se você falar às crianças que há apenas uma imagem a ser obedecida, e que quem não for assim é ruim, é feio, claro que as pessoas vão se auto-mutilar quando crescerem.

V-DAY

“O V-Day é inacreditável. Em 2005 teremos 1.120 cidades envolvidas, 2300 produções, do Usbesquistão, Paquistão, Manila, 60 V-Days da Inglaterra, 30 V-Days na California. É fantástico. Acabo de voltar do tour pelos EUA, agora vou para a Europa, onde será realizado o primeiro V-Day da Europa em Bruxelas. Ainda estarei na Islândia, Dublin, Paris. Em julho, ainda estarei no Egito, onde abriremos a primeira casa do V-Day no Oriente Médio. Hoje ainda estamos lançando o V-Day em Tóquio, para homenagear as mulheres estrupadas pelos soldados japoneses durante a Segunda Guerra Mundial. Os brasileiros, inclusive, contactaram-me para dizer que finalmente vão fazer um V-Day lá. Também vamos levantar o assunto sobre as mulheres iraquianas que estão sofrendo o mesmo abuso desde que os EUA começaram a bombardear seu país. É um esforço imenso e muito bonito. Um dos exemplos é Agnes. Quando ela abriu uma casa na África, há apenas três anos, para ir contra a mutilação genital feminina, ela foi totalmente odiada e excluida da comunidade. E há apenas seis meses ela foi eleita a prefeita de sua cidade. Estamos começando a ver este tipo de transformação em vários lugares do mundo. Isso é fascinante.”

# # #


[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

---

voltar