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Marcia Angell
11.julho.2006


Ex-editora de uma das mais respeitadas revistas médicas revela os podres da indústria farmacêutica

Tania Menai, de Nova York

A médica americana Marcia Angell talvez seja capaz de curar dores de cabeça. Mas ela, certamente, tem igual capacidade de causar enxaquecas nos profissionais da indústria farmacêutica. Acadêmica sênior do Departamento de Medicina Social da Universidade de Harvard, Marcia é autora de vários livros e artigos que questionam e cutucam, de dentro para fora, a ética nas áreas da medicina e pesquisa. Ela coloca do avesso questões como o sistema de saúde, tratamento de pacientes terminais e, principalmente, a controversa conduta da indústria farmacêutica. Especialista em medicina interna e anatomia patológica, durante 21 anos Marcia assinou artigos no New England Journal of Medicine, o mais respeitado jornal da área médica e de pesquisa dos Estados Unidos. Deixou o jornal no ano 2000, quando já ocupava o cargo de editora executiva. Grande defensora da ciência e mãe de duas filhas, Marcia, em 1997 ela foi considerada pela revista TIME uma das 25 personalidades mais influentes dos Estados Unidos. Marcia conversou com a Super de sua casa, em Boston.

Há poucos meses, um cientista coreano e um norueguês publicaram estudos falsos em importantes jornais científicos. Como evitar fraudes deste porte?

Já tive experiências neste área. Na verdade, não há nada que possamos fazer. Informações fabricadas são feitas meticulosamente e, se forem plausíveis, não há como um editor detectá-las. Editores recebem os manuscritos, eles não estão no laboratório ou ao lado da cama do paciente examinando passo a passo. Infelizmente, não há maneiras de rever se o material é totalmente fidedigno. Quem acaba por revelar as fraudes, normalmente, são os colegas de trabalho que deduram os cientistas.

Em uma palestra recente, a senhora disse que os Estados Unidos têm dado as costas à ciência. Como assim?

Temos visto neste país uma grande adoção de noções anti-científicas. Por exemplo, as escolas estão sendo pressionadas a ensinar creacionismo em vez de evolução. Há várias tentativas para desacreditar descobertas científicas, como o aquecimento global. O governo apresenta este assunto como controvérso, e na verdade não é. Nos EUA, a medicina alternativa está ressurgindo depois de ter quase desaparecido depois dos grandes avanços da medicina depois da Segunda Guerra Mundial. De repente, muitos americanos estão buscando recursos como toques terapêuticos. Muitos destes métodos, além de não serem provados, viram as leis científicas de cabeça para baixo.

O que tem levado estes americanos a se afastarem da ciência?

Uma das razões é a educação científica precária que temos hoje em nossas escolas públicas. As professoras ganham pouquíssimo, então as pessoas mais talentosas não são atraídas para ensinar. Acabam indo para outras profissões. E para ser professor de ciências, não precisa ser cientista, basta ter uma faculdade em educação. Então, muitas vezes estes professores não sabem o que estão ensinando. O que se aprende em ciências, em vários casos, não passa de uma coleção de fatos. As crianças aprendem como os animais são classificados e como as coisas são vistas pelo microscópio. Mas elas não aprendem a pensar cientificamente – e isso é justamente o oposto de decorar fatos. Pensamento científico envolve cetisismo, até que haja provas. Deveríamos ensinar a maneira de avaliar evidências e como fazê-lo de forma crítica.

Um de seus livros revela minuciosamente os bastidores das farmacêuticas, que costumam agradar médicos com viagens e presente para que eles prescrevam seus remédios. O quanto isso afeta os pacientes?

Isso é péssimo para os pacientes. As farmacêuticas gastam bilhões de dólares em campanhas publicitárias destinadas ao consumidor final. Mas isso não é nada se comparado às dezenas de bilhões de dólares gastos para seduzir médicos de várias formas. Muitas vezes, figindo que estão lhes educando. O efeito disso é que os médicos aprendem que prescrição de remédios é a primeira coisa que eles devem fazer numa consulta – e que para cada de reclamação de um paciente há um remédio que solucione. E depois, preescrevem os remédios para tratar os efeitos colaterais das primeiras receitas. Há quem acabe tomando, diariamente, cinco, seis, sete remédios vendidos sob preescrição médica. Principalmente quando se trata de pessoas idosas nos Estados Unidos. Médicos aprendrem um estilo de medicina que baseia-se em remédios. E mais: que remédios recém lançados, normalmente mais caros, são melhor do que os antigos, ainda que não haja qualquer evidência que sustente essa idéia.

Além disso, as farmacêuticas começam a seduzir estudantes de medicina já nas universidades e hospitais, incluisive no Brasil. Não há como prevenir esta conduta?

Claro, estas universidades e hospitais podem simplesmente proibir que isso aconteça. Estes estabelecimentos dão liberdade total para profissionais que, na verdade, não passam de vendedores destas farmacêuticas. Eles distribuem amostra grátis para os médicos jovens nos corredores, pagam almoços e dão brindes de todos os tipos. São pizzas, canetas e blocos de anotações que no futuro se transformam em presentes bem maiores, como viagens para o Havaí ou resorts para jogar de golfe. Se estas mesmas instituções proíbem vendedores de refrigeradores, por exemplo, elas poderiam, facilmente, banir qualquer vendedor. Basta querer. Mas ele não querem. Eles ficam com medo de ferir o relacionamento com as farmacêuticas.

Nos Estados Unidos, há uma grande crítica quanto ao dinheiro gasto em propaganda por esta indústria. Há remédios para pacientes de câncer anunciados diretamente para o consumidor, com a mesma naturalidade que medicamentos para resfriado. Isso é correto?

Isso é representado como consumismo. Tem-se que “um consumidor educado é algo desejável”. E isso não deixa de ser verdade. Mas, nestes casos, estes consumidores não estão sendo educados, eles são apenas alvos de marketing. E acabam pressionando seus médicos a receitarem os remédios mais novos e mais caros que viram na televisão. Para os médicos, é mais rápido receitar o tal remédio para o paciente do que explicar por quê ele não precisa daquele medicamento. E já que hoje os médicos são obrigados a atender pacientes cada vez mais rápido, eles acabam abocanhados por esta armadilha. Mas deveriam bater o pé e tratar o paciente com da forma que ele realmente precisa.

A senhora chegou a fazer uma resenha sobre o filme Jardineiro Fiel, que trata sobre o abuso de testes de medicamento pacientes de em países de terceiro mundo. No caso deste filme, no Quênia. O quão importante foi levar o tema para o cinema?

Foi muito importante. Este filme é muito bom, concordo com o ponto-de-vista da história. Eu gostaria, apenas, que o filme tivesse explicado por que as faramcêuticas estavam fazendo aquilo. Talvez, muitas delas fazem testes de novas drogas em pacientes na África para não ter de seguir as linhas de conduta de comitês de ética e do FDA (Food and Drug Administration) órgão que regula remédios e alimentos nos EUA. Mas para o papel de um filme é fazer com que o espectator se envolva na história do herói – e Jardineiro Fiel fez muito bem isso.

Qual a sua opinião sobre quebra de patente do medicamento anti-retroviral pelo governo brasileiro?

O Brasil tem sido o pioneiro numa solução esperançosa para este problema. Como alguém pode trocar vidas humanas por lucros de uma farmacêutica?

Há quem acredite, porém, que não vale a pena para as empresas farmacêuticas investirem bilhões em pesquisa, caso os países do Terceiro Mundo quebrem as patentes. Desta forma, não haveria como reaver este investimento. A senhora concorda?

Isso é o que as farmacêuticas gostaríamos que nós acreditássemos. Mas não é assim que funciona. Primeiro, as farmacêuticas fazem muito pouco em termos de pesquisa nas áreas de AIDS, câncer ou outras doenças sérias. Eles fazem experimentos clínicos, mas não fazem o trabalho essencial. O essencial é feito pelos cientistas dos Institutos Nacionais de Saúde (centro de pesquisa do governo americano) e pelas universidades. As farmacêuticas estão preocupadas com os lucros, não com a pesquisa e desenvolvimento. Em 2004, as nove principais farmacêuticas americanas tiveram lucros de 16% - isso é o triplo de lucro das outras 500 maiores empresas dos EUA, que atuam em outras áreas. Eles gastam 15% em pesquisa e desenvolvimento – isso é menos do que a metade do que eles gastam com administração e marketing.

Há muito desequilíbrio hoje entre medicina preventiva e tratamento de doenças?

Ainda não sabemos muito bem como prevenir doenças. Claro que existem algumas excessões – sabemos que não fumar tem um grande impacto na saúde. Há também vários estudos mostrando que a prática de exercícios e uma boa dieta previne diabetes mais do que qualquer remédio. E, claro, tratar da pressão alta previne derrame. Mas quanto às outras doenças, não sabemos o suficiente. Então temos de consumir remédios, não somos capazes de prevenir todos os males. Há um outro aspecto: as pessoas vão ao médico quando estão doentes, ou quando alguma coisa dói. Eles não vão para se prevenir. Talvez isso seja algo que a saúde pública faça. Mas a razão principal do encontro entre indivíduos e médicos é porque o paciente está sofrendo. Ninguém entra num consultório e diz: “por favor, previna o meu câncer de próstata”. Por mais que se faça o exame anual e se dedecte a doença no início, ela não foi prevenida, ela foi apenas detectada.

Num país como o Brasil, quais deveriam ser as prioridades de um Ministério da Saúde?

Obviemente um ministro quer aproveitar o máximo de seu orçamento. Mas ante de fazer isso, ele deve assegurar que seu sistema é a Sistema Único de Saúde, com um orçamento global, que deve ser determinado centralmente. Esta é única forma que se tem para coordenar a saúde e maximizar sua eficiência. Isso evita disperdícios e fragmentações. O orçamento deve ser determinado centralmente, claro. E depois que isto for posto em prática, os ricos não poderiam receber mais cuidado do que os pobres. A população teria que se conformar de que o sistema não cobriria todos os custos, mas alcançaria mais gente. Aos poucos, acredito que todos adotariam esta idéia. Um sistema destes, por exemplo, cobriria o cuidado com pressão alta, mas não cobriria transplante de coração. Este seria ideal. A razão pela qual as pessoas não se sentem confortáveis pelos serviços não cobertos pelo sistema de saúde, é porque eles suspeitam que este sistema não está sendo distribuido adequadamente.

Aparentemente, a economia acaba determinando o valor da vida de um indivíduo. A vida de uma pessoa que mora numa favela acaba valendo menos do que a vida de uma pessoa de posses. Qual o papel da medicina nesta questão?

Esta é uma situação terrível. Há 20 anos, esta realidade era mostrada escancaradamente em revistas médicas onde resultado de tratamentos eram equiparados aos seus benefícios em dólares. Colocava-se um preço nos anos de vida ganhos pelo tratamento: se um executivo de propaganda ganhava 500 mil dólares por ano, a vida dele era medida a partir daquele preço. Portanto, os tratamentos mais caros seriam justificáveis. Nestes parâmetros, se uma dona-de-casa tivesse a mesma doença, sua vida valeria quase nada. Felizmente, não vejo mais isso acontecer. Contudo, ainda existe uma forma implícita de agir assim. Eu, por outro lado, valorizaria muito mais a vida de um lixeiro do que a vida de um executivo de propaganda. Não posso viver sem um lixeiro – mas posso viver sem o executivo.

Os Estados Unidos investem em saúde o dobro da média dos outros países do Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), que englobam 20 países do Primeiro Mundo, e aproveita metade que os demais. Por que?

Um das razões é que nós somos o único sistema baseado em mercado, enquanto os outros são em single pay format. Os cuidados médicos aqui são distribuidos de acordo com a habilidade de pagar, em vez de necessidade do paciente. Quem não tiver como pagar, não recebe. E isso vale para seguro saúde. Então a razão pela qual temos de 45 a 48 milhões de pessoas sem cobertura médica, é simples: eles não podem pagar por isso. Em quem pode pagar, acaba tenho mais cuidado com a saúde do que eles realmente precisam. Quem é rico acaba fazendo uma ressonância magnética desnecessária, e quem é pobre acaba ficando sem a resspnância de que tanto precisa. Esta é a natureza do nosso sistema de saúde.

Até que ponto a medicina deveria interferir na vida de pessoas idosas debilitadas ou doentes terminais?

Não acredito em cortes. Acho que esta decisão deveria depender do paciente; não apenas de acordo com seu estado de saúde, mas também de acordo com seus valores. É preciso saber se ele, de fato, quer extender sua vida. Não tenho objeções a isso. Não é aí que está o disperdício financeiro em nosso sistema de saúde. Há um mito sobre isso, mas não é verdade. Tenho objeção quando o paciente é mantido vivo por mais tempo que ele ou sua família desejam. Havia uma tendência de fazer isso, hoje a situação melhorou neste sentido.

No filme canadense Invasões Bárbaras um paciente de câncer decide pôr fim a sua vida antes que a doença o debilite. A senhora concorda com este procedimento?

Os pacientes que escolhem acabar com sofrimento que os leva à morte, preferindo não passar pela agonia que algumas doenças impõe, deveriam fazer o que acharem melhor. Acredito muito em autonomia dos pacientes. Ele tem o direito de viver se quiser, ou de morrer, caso a vida não tenha mais valor. Sim, vemos pessoas que esperam por aquele milagre. E em muitos casos vemos que eles tem sido mau guiados. Mesmo com uma onda de seguidores da medicina alternativa, há um grande crédito em ciência médica nos Estados Unidos. Até aqueles que desacreditam no sistema de saúde é um entusiasta da medicina científica. E muitos acreditam que há cura para quase todas as doenças. E muitos médicos acabam entrando nesta crença por serem incapazes dizer “eu não sei. Não há mais nada que eu possa fazer por você”. Eles vão tentando táticas novas, até que, finalmente, os paciente acabam sofrendo não só da doença, mas de todas as tentativas para revertê-la; isso acontece mesmo quando já está claro que não há como reverter o quadro clínico. É uma pena.

Como a senhora viu o caso da americana Terri Shivo, que ficou 15 anos vegetando sobre uma cama, até que seu marido – contra a vontade dos pais da paciente – decidiu terminar a vida dela?

O caso foi complicado porque o marido e os pais não se entendiam. Isso é excessão. Há cerca de 10 mil pessoas neste estado em qualquer dia nos hospitais americanos. Mas as famílias concordam com o que deve ser feito, sem ter de ir para a justiça. Acho que, ao mesmo tempo que o marido estava certo ao levantar que ele não iria mais sair daquele estado, tenho simpatia pelos pais. De acordo com o que eles acreditam, é muito doloroso ver a retirada do tubo de alimentação e vê-la morrer de desidratação. Para eles, isso é assassinato. Se eu fosse o marido, talvez eu teria cedido ao pedido dos pais dela. Isso não iria fazer diferença no quadro clínico, ela já não estava mais viva há muito tempo.

O sistema de home-care, ou seja, o cuidar do paciente em casa, é uma realidade hoje. A medida em que se vive mais, os hospitais não têm dado conta do número de pacientes. Como a senhora vê esta tendência?

Esta opção deveria estar mais disponível do que está hoje, e deveria ser mais barata do que é. É um setor extremamente importante. Há bastante idosos que não podem mais viver sozinhos, mas poderiam ter uma vida normal com a ajuda mínima de outra pessoa. E esta ajuda não deveria ser apenas médica, mas também social, como alguém para limpar a casa ou carregar peso. As pessoas teriam um maior desejo de morrer em casa se a infra estrutura para tal fosse melhor. Muitos falam que querem morrer em casa, mas quando chega na hora H, a família fica com medo, e os pacientes acabam falecendo no hospital, cheio de tubos, justamente como não gostariam. Se as famílias pudesses administrar alívio de dor e outras ajudas, haveria outra forma de fazer este episódio mais tolerável. Este poderia ser uma boa parte do sistema de saúde.

A senhora é uma das médicas mais renomada dos Estados Unidos. Isso intimida seus amigos ou familiares de lhe telefonarem para dizer que estão com dor aqui ou ali?

De forma alguma. Tenho uma família muito grande, e eles não hesitam em me ligar seja a hora que for.


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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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