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Ruth Reichl
04.julho.2006

Alhos, safiras e perucas


Tania Menai, de Nova York

Ao embarcar num vôo Los Angeles-Nova York, em 1994, a crítica de restaurantes Ruth Reichl sentou-se ao lado de uma jovem nova-iorquina. “Sou garçonete. E sei que a senhora escreve para o jornal Los Angeles Times, foi convidada para trabalhar no The New York Times e tem um filho”, disparou a jovem. E continuou: “sua foto está espalhada pelos restaurantes nova-iorquinos. Meu chefe ofereceu 500 dólares para quem avistá-la em uma de nossas mesas”. Ruth engoliu seco saber o que lhe esperava. Para driblar a situação, ela apelou para perucas, maquigens e diferentes cartões de créditos, criando seis personagens que a deixavam irreconhecível. Por mais de cinco anos, Betty, Brenda, Chloe, Emily, Miriam e Molly circularam pelos restaurantes da cidade, incluindo os tailandeses, brasileiros, vietinamitas e etíopes, cozinhas até então esquecidas pelos críticos tradicionais. Estas aventuras estão descritas em seu terceiro livro Alhos e Safiras, a recém lançado no Brasil pela editora Objetiva. Aos 58 anos, Ruth, que já foi garçonete na juventude, é dirige hoje a revista Gourmet, a principal publicação no setor de culinária dos EUA. Ela nos recebeu em seu amplo escritório, na Times Square e revelou: “Adoro comida condimentada. Recentemente, demos uma bela matéria sobre os pratos da Bahia”.

O que é preciso ter para ser um crítico de restaurante?

Um antigo crítico dizia que basta ter apetite. Concordo com ele. Mas também é importante ser uma pessoa social, porque passamos oito horas por dia rodeada por gente à mesa. Além disso é importantíssimo escrever bem. Muitos críticos pensam que o assunto é interessante o suficente, então o texto não precisa ser elaborado. Isso não é verdade. Ora, não basta dizer se a comida é boa ou ruim. Temos de fazer com que as pessoas sintam seu sabor – é preciso ter imaginação o suficiente para usar palavras que coloquem as pessoas à mesa comendo o que você está descrevendo. E, claro, é precisamos ser justos sobre restaurantes e conhecer a fundo diferentes culinárias. Até pouco tempo, um crítico de culinária nos EUA precisava saber apenas sobre comida européia. Mas hoje é preciso conhecer a chinesa, a brasileira, a australiana, a tailandesa – e saber o que está acontecendo em casa uma delas. Temos de ser capazes de julgar a comida pelo que ela realmente é em vez de apenas dizer tem um gosto bom.

Críticos têm a capacidade de fazer um restaurante florecer. Será que eles têm igual capacidade de fazê-lo falir?

Nosso poder de fazer um restaurante falir é bem reduzido. Quando escrevemos uma crítica ruim, normalmente acontece o oposto: as pessoas que gostam de lá acabam indo para apoiar a casa e dizer que o crítico é um bobo. O restaurante acaba falindo, sim, quando ganha uma crítica negativa e ninguém aparece para apoiar. Isso significa que o restaurante é de fato ruim e iria falir de qualquer maneira. Por outro lado, certamente temos o poder de tornar restaurantes conhecidos. Há vários casos de pequenos restaurantes desconhecidos ou de lugares que lutam para sobreviver que ganharam um empurrão quando um crítico de um grande jornal apareceu por lá. De um minuto para o outro passaram a navegar de vento em popa. Antigamente um crítico talvez tivesse a capacidade de levar um restaurante a falência. Mas hoje isso não acontece. Só em Nova York, há cerca de 40 deles - é muito difícil para uma pessoa ter esse poder sozinha.

O que um cliente pode esperar, no mínimo, de um restaurante?

Em primeiro lugar, você tem de saber qual a proposta do restaurante. Não adianta reclamar do serviço de um pequeno restaurante chinês da Chinatown; esta não é a razão da existência daquele lugar. É preciso ter expectativas realistas. Ainda assim, qualquer cliente tem de esperar ser tratados com respeito, ser servido com uma boa comida, e não ser enganado. O resto vai depender de cada restaurante. Num bistrô, você não deseja esperar mais do que 20 minutos pela sua mesa. A expectativa é que haja algo delicioso e pagável no menu, que o seu garçom saiba o que faz e que a garrafa de vinho não tenha um preço exorbitante. Isso já difere de um jantar em um restaurante francês sofisticado. Ou mesmo de uma carrocinha de cachorro quente, onde espera-se comer algo barato e que não te deixe doente.

Qual o papel de um garçom?

Crucial. O garçom é o embaixador do restaurante. Se ele estiver de mau-humor, um cliente nunca mais voltará. Quando eu era garçonete, sempre dizia que há uma guerra entre a cozinha e o cliente. Quando um cliente pede uma carne bem passada, e vê-la chegar mal passada, ele normalmente pede para que seu prato seja refeito na cozinha. O cozinheiro vai gritar e dizer que está bom, que é para voltar com a carne a sala de jantar. É o garçom que aparta a briga. Se ele for bom, o cliente não percerberá esta guerra.

A senhora já saiu de algum restaurante sem deixar gorjeta?

Nunca. Depois de eu mesma ter sido garçonete por tantos anos, nunca deixei ninguém sem gorjeta. Mesmo para um garçom que certa vez me insultou. Não paguei-lhe muito, mas paguei.

Como a senhora treinou seu paladar?

Na década de 70, trabalhei durante seis anos em uma revista semanal de São Francisco. Foi quando experimentei comida tailandesa pela primeira vez. Gostei tanto que resolvi ir para a Tailândia. Liguei para várias revistas e ofereci matérias sobre esta cozinha. Ninguém se interessou. Então fui para o Japão, de onde escrevi bastante sobre cozinha japonesa para pagar a viagem. Depois, sim, fui para a Tailândia, onde passei um mês experimentando os diferentes pratos. O mesmo fiz na China. Na época eu não era mãe, nem tinha muito dinheiro. Viajava barato e treinava o meu paladar nestes países. Quando começei a escrever, não conhecia muito sobre vinhos, mas tive a sorte de coonhecer pessoas da área. Passei a viajar com eles por vinícolas da Califórnia, da França e da Itália.


O que mais lhe deixa irritada em restaurantes?

Além daqueles guardanapos feitos de tecidos que deslizam constantemente, odeio quando as mesas e cadeiras são desniveladas. Há também este novo tipo de prato, arredondado na beira que não dá para recostar os talheres – não entendo como alguém pode lhe dar um prato destes. Ainda questiono aqueles copos difíceis de segurar. Não gosto quando as coisas são feitas para olhos a ponto de não serem confortáveis. É difícil entender como alguém que abre um restaurante senta à mesa para ver se a cadeira é boa, se há espaço para as pernas, se as cores da toalha e são equilibradas. Isso é primário.

Restaurantes funcionam de formas diferentes nos diversos países?

Totalmente. Alguns países não têm uma grande cultura de restaurantes. Os americanos comem mais fora do que os demais países e usam o restaurante de formas diversas. Infelizmente, o mundo está ficando muito americanizado e a cultura do fast-food está se espalhando pelo planeta. A Itália é um ótimo exemplo de uma sociedade onde as pessoas ainda comem em casa com a família – eles vão a restaurantes ocasionalemente. Restaurante era um negócio familiar até os americanos tomarem a indústria. No estilo francês, por exemplo, o marido ficava na cozinha, a esposa tomava a frente da casa, os filhos passavam a trabalhar junto. Os americanos transformaram esta tradição em um modelo corporativo. E isso é ruim. O outro lado da moeda é que hoje os chefs ganham muito dinheiro, e cada vez mais muitos deles querem ser um empreendedor com centenas de restaurantes com seu nome. Esta postura mudou a natureza dos restaurantes. Cada chef hoje quer um restaurante em Nova York, no Rio, em Sidney, em Tóquio – querem uma vida internacional.

Será que ao pensar tão grande estes chefs perdem o controle e a qualidade?

Alguns sim, outros não. Alguns são muito bons em criar famílias de chefs – desta forma eles podem mandar suas crias para dirigir os diferentes restaurantes pelo mundo, tornando o negócio quase familiar. O austríaco Wolfgang Puck, radicado nos EUA, é um bom exemplo. Há gente trabalhando para ele por quase 20 anos. Ele tem dezenas de restaurantes no país, chefiados por pessoas de sua confiança e que mantêm a visão do modelo original.

É possível julgar a comida de alguém em um único jantar?

Não. Eu ia oito, nove, dez vezes ao mesmo restaurante, provava o mesmo prato pelo menos duas vezes. Se por acaso em um determinado dia alguém exagera no sal, o prato fica arruinado. Para sermos justos, temos que ir a um restaurante pelo menos mais uma vez. Eu provava três ou quatro vezes antes de dar qualquer opinião. Analisava todas as variáveis - provava tudo o que o cardápio oferecia, ia para almoçar, jantar, ia acompanhada de um grupo grande, de um grupo pequeno, ia em noites de semana e noite de fim-de-semana, ia de fantasia e sem.

Qual foi a pior reação de um chef em relação a sua crítica?

Eles não costumam reagir negativamente. Mas na noite de autógrafo de um dos meus livros, na qual eu estava fantasiada de Brenda, o último da fila era um chef jovem, acompanhado por um menino de nove anos. Eu havia escrito uma crítica muito ruim de seu restaurante. E ele me disse que foi mandado embora. Senti-me muito mal. Pedi desculpas e disse que a comida era de fato muito ruim. Foi terrível para mim. Mas este era o meu trabalho.

O quanto um banheiro sujo pode arruinar a reputação de um restaurante?

Criticar banheiros não é meu trabalho. Sei que isso é muito importante para muitas pessoas, mas não para mim. Além disso, como crítica de restaurante, não ia muito a banheiros – tinha de manter a discrição em vez de levantar-me durante as refeições. Muita gente me alertava sobre o banheiro de certos restaurantes, mas eu não ligava. Claro que o faxineiro de um restaurante deve checar o banheiro algumas vezes por dia. Mas não acho que a limpeza do banheiro de um restaurante tem a ver com a limpeza de sua cozinha. Ambos começam o dia limpos - o banheiro espelha mais o comportamento do cliente do que do restaurante.

Como a senhora consegue manter a forma?

Quando você come 12 refeições maravilhosas por semana, você perde a obsessão por comida. Um crítico aprende a comer o quanto quer; depois pára. Ontem à noite jantamos fora e pedi torta de merengue de limão de sobremesa. Eu adoro. Ainda assim, dei apenas duas garfadas, pois sei que hoje também vou comer muito bem.

A senhora ainda consegue jantar fora e simplesmente curtir a refeição sem prestar atenção nos detalhes?

Sim. Não sou uma crítica natural. Se eu não gosto de algo, não como. Se eu gosto, como. Tenho amigos que prestam atenção em cada pedaço. Não sou assim. Para mim é um grande prazer simplesmente sair para jantar sem notar se a comida cozinhou demais, isso ou aquilo. Ontem saí com a minha família e meu marido reclamou. Disse a ele para deixar no prato, mas que parasse de julgá-lo. Já em casa não gosto da idéia de que se tem que cozinhar comida de chef.Faço massas, saladas e sempre tenho frango na geladeira, para improvisar uma sopa ou risotto. Também adoro preparar tortas.

Mesmo em restaurantes caros, ainda há quem não saiba indicar, via posição de talheres, o final de uma refeição. Maitres reclamam que isso atrapalha o serviço. A senhora vê isso acontecer?

Isso existe. E era muito comum na época em que começei a escrever sobre restaurantes. As pessoas não sabiam se comportar e ficavam nervosas. Mas isso acontece cada vez menos em Nova York. Esta cidade é boa em restaurantes porque as pessoas sabem frequentá-los e são exigentes. Nova-iorquinos não vão a restaurantes ruins. Sendo assim, estes restaurantes desaparecem. Eles passaram a se sentir confortáveis em restaurantes. Por exemplo, cada vez que um garçom tenta retirar o meu prato quando eu ainda estou comendo, aviso educadamente a ele que não terminei a refeição. E mesmo quando já terminei, tenho pavor de que tirem meu prato quando alguém na minha mesa ainda está comendo. Só pode-se retirar a mesa quando todos estiverem terminado. Tampouco vejo problema em dizer que prefiro esperar por uma mesa melhor do que a oferecida. Muita coisa se consegue pedindo com modos.

Nova York tem 20 mil restaurantes. Isso torna a função de um crítico de restaurantes ainda mais relevante?

Sim. Aqui as cozinhas são muito pequenas e ir ao supermercado não é a coisa mais fácil. A forma como a cidade funciona favorece economicamente os restaurantes de uma forma maravilhosa. Para se ter uma idéia, diferentes nacionalidades frequentam as mesas em três turnos por noite: os japoneses jantam às seis da noite, os americanos jantam por volta de oito da noite, e os espanhóis e brasileiros não aparecem antes das dez e meia. Há também um grande mercado de almoço – em muitas outras cidades, os restaurante contam apenas com o jantar. Em Nova York há gente viajada e endinheirada; não há no mundo pessoas mais abertas a novos sabores. Isso se dá também pelo fato de a cozinha americana ter sido inexpressiva por várias décadas. Veja que os italianos gostam de comida italiana. Os chineses gostam de comida chinesa. Os franceses querem comida francesa. Só os nova-iorquinos, e também os japoneses, estão abertos para uma diversidade de sabores. Aqui tem-se reações, sem preconceitos, como “Um restaurante brasileiro! Que legal, quero descobrir esta nova cozinha”.

Em Los Angeles não é assim?

Não. Em Los Angeles todo mundo é preocupado com o peso. Houve um momento em que todos lá eram apaixonados por comida, mas isso acabou. Na verdade, em Los Angles as pessoas se preocupam em saber aonde as celebridades vão comer. Em Nova York come-se mais. O pessoal quer saber aonde a comida é boa e o que há de novo. Nova-iorquinos não estão nem aí para celebridades. Esta é uma diferença capaz de mudar as características dos restaurantes.

Como foi a reação dos chefs quando a senhora deixou Los Angeles para ser a crítica de restaurantes do New York Times?

Os grandes chefs ficaram amedrontados. Eles sabiam que o meu gosto era diferente. Começei a escrever sobre restaurantes coreanos, japoneses, chineses. Todos os grandes restaurantes – como os franceses, por exemplos – que achavam que dominavam as sessões de imobiliária e de restaurantes do jornal, viram que as coisas tinham mudado. Eu ia para todos os cantos – lugares novos, alguns sugeridos por amigos, outros que não tinham recebido críticas há algum tempo. Comia fora de 12 a 14 vezes por semanas - sempre estava pesquisando 25 ou 30 restaurantes diferentes ao mesmo tempo.

Alguma de suas personagens já foi mal tratada em algum restaurante?

Sim, a Betty. Ela era uma mulher triste, pegava a mesa do fundo, porque nenhum restaurante quer mostrar um cliente assim. Um dia, o maitre de um restaurante, muito educadamente, colocou-me numa mesa muito boa. Daquela vez, quem me desperezou foram os clientes – eles não me queriam lá. Betty foi um personagem que durou muito tempo porque não era notada. As outras não. Visitei o restaurante francês Daniel, um dos mais caros da cidade, vestida de Brenda, a minha personagem predileta. Ela vestia óculos com armações coloridas, roupas de brechó e quimonos japoneses. Brenda deixou de existir depois daquele jantar. As críticas de grandes restaurantes davam dicas a seus donos de quem era a personagem. Já Molly Hollis, uma professora de colegial aposentada, desapareceu logo depois de eu jantar no Le Cirque, onde fui completamente ignorada até descobrirem quem eu era. A Chloe durou seis meses – ela usava terninho e peruca cor champagne. Depois de reconhecida, criei outra. Miriam, por exemplo, era um retrato fiel da minha mãe judia.

A senhora deixou o New York Times para jantar com seu filho todas as noites. O quão importante foi esta decisão?

Este passo fez uma enorme diferença na vida do meu filho. Não há nada mais importante para uma mãe do que alimentar a sua família. Todas as manhãs, preparo suco de laranja para o meu marido e filho - e os sirvo na cama. Faço o que eles querem para o café-da-manhã e comemos juntos. Também jantamos juntos todas as noites. Meu filho diz que apenas nós e uma outra família de sua turma da escola jantam juntos. Isso é terrível. Não vejo necessidade de jantares sofisticados. Nem tenho tempo de prepar algo assim, pois chego tarde do trabalho. O mais importante é jantar junto – seja qual for a comida.

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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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