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Outras entrevistas de: TPM

Eduardo Coutinho
10.novembro.2007

Um Homem de TPM

O maior documentarista do Brasil tomou injeção de hormônios e foi contaminado por uma doença: falar. Famoso por saber escutar e detestar abrir a boca, Eduardo Coutinho, depois de ter passado quase um ano ouvindo as personagens de seu novo filme, Jogo de Cena, conta o que aprendeu 83 mulheres depois.

Tania Menai

“Convite: Se você é mulher com mais de 18 anos, moradora do Rio de Janeiro, tem histórias para contar e quer participar de um teste para um filme documentário, procure-nos”. Com este anúncio, espalhado por jornais, revistas e até vagões de metrô femininos, o lendário documentarista Eduardo Coutinho, 74 anos, atraiu 83 mulheres para fazer o que elas mais sabem: falar. Falar muito, chorar, contar tragédias, abandono de marido, perda de filho, gravidez precoce, mazelas. Ali, só vida pessoal. Ninguém foi reclamar do chefe ou da política nacional. “Era um vale de lágrimas”, lembra ele. Vinte e três foram selecionadas. Onze acabaram na edição final de “Jogo de Cena”, a mais nova obra de Coutinho, que já premiou o público com “Edifício Master”, “Babilônia”, “Santo Forte e “Cabra Marcado Para Morrer”. Desta vez, os depoimentos, gravados num teatro carioca, são ora interpretados por atrizes, entre elas Fernanda Torres, Marília Pêra e Andréa Beltrão. A realidade e ficção, propositalmente, confunde o expectador. Depois de tanto ouvir mulheres (aliás, ouvir é o seu maior talento), Coutinho confessa sentir dores no útero e sofrer de intensa TPM. “Pode dizer isso às suas leitoras”, avisa. Coutinho não fala da vida pessoal, tem pavor de computador, escreve numa velha Olivetti, arranca páginas de livros, fuma cinco maços por dia (“meu próximo documentário será filmado sobre cadeira-de-rodas”) e mais: diz que abomina dar entrevistas. Mentira. Ele recebeu a TPM no escritório da VideoFilmes, no Rio, e falou tanto ou mais que suas personagens. Alguma coisa ele aprendeu com elas.

Por que um documentário que mescla realidade com atrizes?

Ao falar de sua própria vida, de sua memória, as pessoas estão entre o teatro e a sinceridade, entre a verdade e o falso. Toda memória é mentirosa, é precária. O personagem bom é aquele que se inventa dentro da câmera, entende? E se inventar não é mentir. Se inventar é narrar bem uma história. Há pessoas que têm vidas medíocres, mas que as narram maravilhosamente bem. E tem pessoas que viajaram pelo mundo, foram a guerras e contam isso sem o menor interesse. O bom personagem é aquele que quando eu passar de uma hora de entrevista para sete minutos terei um concentrado que carrega uma força fabulosa. Então quis fazer um filme que juntasse a personagem real com a atriz. Em tempo, a etimologia de “personagem” é uma pessoa que torna-se pública. Achei que este confronto valia a pena. Temos três atrizes que o público reconhece, a Marília, a Fernanda e a Andréia; temos atrizes menos conhecidas, e temos as que não são atrizes – em certos casos, o expectador não sabe se aquela na tela é atriz ou a personagem real. Queríamos aproximar a ficção da vida real. As pessoas atuam na vida real. Todo mundo fala de um jeito com o patrão e fala de outro jeito com o marido. E isso aumenta muito mais com uma câmera. Há um autor francês que diz que “todo grande ator é mulher”.Acho que isso funcionou neste sentido, entende? Pode-se dizer que este é um filme sobre mulher. E também sobre representação.

Por que mulheres?

Muito simples. Porque faço filmes com o outro. Poderia ter feito sobre crianças, que são naturalmente extraordinárias. Mas teria muita complicação burocrática, tanto que no anúncio coloquei mulheres acima de 18 anos. Não faço filmes sobre cineastas; faço filmes sobre quem desconheço, que eventualmente são favelados, catadores de lixo, moradores de outros apartamentos. Neste caso, são as mulheres. Pode ser que daqui a dez anos exista gente clonada, existam dez sexos diferentes, essas coisas. Mas fiz apenas com mulheres. Travesti? Ah, não. Não neste caso. A relação com a maternidade que a mulher tem...Eu nunca pari. E nunca vou saber como é; são experiências difíceis de transmitir, sabe? O mesmo acontece com casos de tortura. É meio intransmissível. Você é negro? Você é agonizante? Você é peão? Foi camponês? Eu não sei como é, então você me diz.

O que, na sua opinião, levou tantas mulheres a atender ao anúncio?

Mil motivações, umas são atrizes, outras não. Tem a Sarita, que viajou o mundo, fala línguas, e, no entanto, foi lá porque sentia a necessidade de ser ouvida – é nisso que baseio o meu documentário. As pessoas vivem desesperadas para serem ouvidas. Isso sempre foi assim - e hoje a televisão usa esse desejo legítimo de ser escutado, para produzir essas coisas como Big Brother. Esta é uma forma perversa de usar esta necessidade. Até porque, ali ninguém escuta ninguém – e essa necessidade de ser escutado é natural do ser humano. Ninguém pode legitimar você, só o outro. Como você justifica uma vida? Cada um é de certa forma singular e deseja ser assim. Ao dizer que fulano é símbolo disso ou daquilo, você está matando a pessoa. Ninguém é símbolo de nada – cada um tem sua impressão digital. A voz de nenhum ser humano é igual de outro.

Como o senhor ouviu essas mulheres?

Você tem que estar vazio ao entrevistar uma pessoa. E esse vazio deve ser preenchido pela voz do outro. O que é uma concepção história, eterna do feminino. Ao mesmo tempo, este é o lado da passividade, sem ser o lado submisso. Ao mesmo tempo, é preciso saber perguntar, que é o lado ativo, o lado o masculino. Numa entrevista, preciso saber quando é que o desejo daquela mulher vai coincidir com o meu? Quando é que ela vai falar o que eu quero ouvir? Tenho que guiá-la para isso. O ideal absoluto - além do masculino e do feminino - é ser aquela criança de cinco, seis anos, insuportável, que pergunta tudo. São elas com suas questões que põem caos a tudo.

O que o senhor aprendeu ao escutar as mulheres?

Não li nada antes, nem depois, nem durante. Claro que os livros que li não me serviram para nada. Vale ressaltar que as entrevistas prévias foram feitas por uma mulher, a Cristiana Grumbach, minha diretora-assistente – ela agüentou durante dias e dias, dez, doze mulheres que falavam - ela ficava exausta. Mulher fala e mulher chora, mais do que o homem. Aprendi primeiro que muitas estavam ali por necessidade. Em geral, as melhores personagens dos meus documentários são mulheres. Inclusive, as expectadoras têm uma relação mais forte com os meus filmes do que os homens, incluindo Edifício Máster. Elas são mais sensíveis. Por exemplo, quando trato do aspecto solidão consigo chegar muito mais numa mulher do que no homem. Não é que o homem não tenha esse troço de solidão. Ele disfarça. Li no jornal que um homem de 50 anos tem 30 vezes mais chances de se casar do que a mulher. Então esse troço da solidão, da fragilidade, e, basicamente, a relação do homem, que começa com o pai – o não-pai, o pai-ausente, ou o pai-extraordinário - tem um grande papel. E o papel da maternidade? Esse é violentíssimo, é o que está no filme. O homem talvez não possa provar que é o pai da criança, mas a mulher sabe que o filho é dela – a não ser que roubem o filho na maternidade, que nem uns desgraçados fazem no Brasil.

O senhor acha que um filme desses com homens traria resultados tão fortes?

Quando vou a restaurantes, vejo mulheres conversando, como falam, é uma coisa extraordinária, falam alto. Claro que se eu tivesse homens no documentário, eu teria choro e referências à mãe, mas não teria exibição de choro, porque ainda é vigente no Brasil o homem que não chora, que não se rende à fraqueza, à fragilidade. A mulher te conta claramente que ela foi traída, o homem não. Têm as mulheres abandonadas, as que perderam filhos. E, de fato, a reação das mulheres, é diferente da do homem.

As histórias dessas personagens têm algo de Almodóvar – as mulheres fortes e sofredores, e os homens “quase dispensáveis”. Suas entrevistadas expõem muito a vida pessoal. O senhor eliminou depoimentos que poderiam comprometê-las?

Sim, alguns – o ex-marido de uma delas ainda tinha a chave de casa e telefonava todos os dias, e isso poderia prejudicá-la. O retrato deste marido era tão caricatural... e a história era fantástica, além de tremendamente bem contada. Durante anos esta mulher foi estuprada pelo marido e ela contava com um certo humor. Tinha um lado de vingança, mas era contado de um jeito leve – chegamos até a fazer testes com as atrizes com este texto, e todas atuavam com raiva. Ela não. Era realmente espantoso, mas tive de tirar. Nem no DVD vou colocar, até porque ela tem três filhos.

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[ copyright © 2004 by Tania Menai ]

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